quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Deixa bater o coração

Vagueio como um fantasma
na horda de nevoeiro que se ergue em meu redor
já não sei por onde vou mas sei aonde quero chegar
abro as asas e voo pelas cores do arco-íris
subo o primeiro degrau no escuro confiante de que lá chegarei
mesmo que não veja o caminho,
porque a vida acontece mesmo quando nós paramos para cheirar uma flor
porque nada pára e tudo muda mesmo quando o coração esmorece
e é chegada a hora de voar
de deixar bater o coração
de cheirar uma flor mesmo enquanto se caminha
porque o nevoeiro também se abre para nós passarmos
e se voarmos de asas bem abertas
não iremos tropeçar pelo caminho.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Uma noite de tempestade...

Há uma aura de magia no ar num dia de chuva. Não sei se é do cheio a terra molhada, se é das cores que despontam do céu quando se abre um simples raio de sol.
Desde miúda que os arco-íris me fascinam. São algo que mexe comigo, vindos directamente daquele mágico mundo da imaginação que só uma criança é capaz de ter. E foi num dia de chuva que o arco-iris aconteceu e ficou para toda a minha vida...

Saí do autocarro e abri espaço por entre a multidão para tentar abrir o chapéu de chuva. Este era um Inverno particularmente chuvoso, com dias cinzentos e frios, que eram capazes de nos gelar por fora e por dentro.
Consegui furar pelo meio daquele mar de gente que se deslocava pelas ruas da cidade e entrar na porta do prédio da minha casa, sem me molhar, o que por si só era um feito digno de mérito, já que o céu decidira descarregar toda a sua fúria de uma só vez.
Mal tinha entrado em casa quando senti algo peludo roçar-me nas pernas. Era o Chakra, o meu siamês, que tinha um acordo tácito comigo: festas na barriga em troca de passar algum tempo ao meu colo.
Era a minha única companhia mas confesso que depois de um dia de trabalho me dava imenso prazer chegar a casa e ter um companheiro silencioso que não era demasiado exigente e que quase não me dava trabalho a tratar.
Naquela noite sentia-me cansada. Mais do que era habitual. Tomei o meu banho e vesti uma roupa confortável, que andava entre o decente para sair e comprar qualquer coisa para comer e o conforto do sofá, onde planeava deixar-me dormir.
Calcei uns ténis e vesti um casaco impermeável e quente.
- A dona já vem. Porta-te bem. - disse para o Chakra, em jeito de aviso.
Os seus olhos azuis brilharam, aceitando o desafio que acabara de lhe impôr e lambeu lânguidamente os beiços. Já sabia que ia encontrar alguma coisa fora do lugar quando voltasse a entrar em casa.
Saí do prédio e pus-me a caminho do pronto-a-comer no quarteirão seguinte. Ainda chovia e estava a tentar abrir o chapéu de chuva para não apanhar uma molha, que me valeria uma bela constipação após o banho quente e reconfortante de onde acabara de sair.
Estava tão envolvida na luta com o chapéu que nem o ouvi aproximar-se.
- Precisas de ajuda?
Oh céus, a sua voz tinha o dom de mexer comigo e me deixar irritada. Aliás, o simples facto de ele respirar me deixava irritada!
Ergui os olhos e encontrei os seus. Azuis, claros como o mar das Caraíbas e nesse dia não exibiam o rasgo de ironia que estava tão habituada a encontrar ao longo dos anos.
Baixei um pouco as defesas e descontraí o maxilar, o que também tornou a minha voz um pouco menos áspera do que o habitual ao responder-lhe.
- Não, obrigada. Isto é só dar aqui um jeitinho e já se segura...
- Tens a certeza?
- Absoluta.
Ele encolheu os ombros e caminhou rumo à porta do prédio. Do prédio onde eu morava. Do meu
prédio.
Fechei os olhos por um momento, respirei fundo para normalizar o ritmo cardíaco e voltei à minha luta com o chapéu tentando varrê-lo do pensamento. Definitivamente o universo gostava de uma brincadeira de mau gosto de vez em quando. Só podia, para tê-lo feito meu vizinho depois de tudo o que me fizera passar...
Finalmente consegui fazer segurar o chapéu de chuva aberto e pus-me a caminho.
Tinha ficado intrigada com o olhar dele. Parecia que toda a idiotice habitual tinha desaparecido, que as barreiras que erguia à sua volta tinham sido derrubadas. Parecia quase um ser humano normal.
André eu eu tinhamos crescido juntos. Quero dizer, não na mesma casa, mas na mesma rua. Desde miudo que o detestava. E ele a mim. Tinhamos o condão de nos irritarmos mutuamente. Ele porque era um verdadeiro idiota e se armava em parvo, eu porque ficava tão irritada com a sua idiotice que não resistia em mexer-lhe com os nervos.
Como daquela vez em que eu estava com um grupo de amigas num bar e ele arranjou maneira de me fazer entornar a bebida sobre o meu vestido novo, que me fazia umas pernas deslumbrantes, exactamente no momento em que eu estava quase a dar a volta a um espécimen do sexo oposto que era do tipo semi-Deus...e eu depois vinguei-me dizendo a todas as minhas amigas que ele não sabia beijar e que me tinha lambido até à goela! Não que ele tivesse de facto tentado beijar-me alguma vez ou vice-versa, mas o boato arruinou-lhe a reputação durante uns bons meses.
Só de pensar naqueles tempos veio-me um sorriso ao rosto. Parecia que não me conseguia lembrar da minha existência sem ele para me irritar.
Depois de eu ter saído da casa dos meus pais tinha finalmente conseguido um pouco de paz. Ele entretanto também tinha ido morar com a namorada, por isso os nossos caminhos afastaram-se durante alguns anos...até há algumas semanas atrás!
Estava eu descansadinha da vida quando a um Domingo de madrugada (tipo, onze da manhã depois de uma saída até tarde com amigas) oiço um barulho de coisas a arrastar sobre a minha cabeça. A custo tinha aberto os olhos e foi com horror que percebi que tinha adormecido com a persiana em cima e a visão da minha janela incluía um elevador de uma carrinha de mudanças. Arrastei-me até lá para fechar a persiana, evitando exibir a minha roupa interior a uns quantos homens das mudanças e foi com horror que vi o André lá em baixo, a comandar os trabalhos.
Tentei raciocinar e percebi que o andar que ficara vago por cima de mim tinha sido alugado na semana anterior...e pelos vistos tinha sido por ele! O meu pensamento vagueou por entre uns palavrões e um "a minha vida acabou!" mas depois percebi que era o cansaço que me estava a puxar para o melodrama.
Como estava enganada! Desde que me descobrira, num dia em que eu estava a entrar encharcada no prédio, que o inferno estava de volta à minha vida. O mesmo olhar zombeteiro, o mesmo ar arrogante...
O pior tinha sido quando me tinha visto a entrar com um amigo no prédio. O olhar que me lançou oscilou entre o "vou contar tudo à tua mãe!" e o "o que é que pensas que vais fazer com esse fulano?". Incomodou-me a tal ponto que o encontro que se antevia escladante não passou de um mero café.
Consegui chegar ao pronto a comer sem ficar entalada no chapéu. Pedi a comida e voltei para trás, fazendo o caminho de regresso a casa mais uma vez absorta em pensamentos e recordações. Nem dei pela sombra que se aproximou por detrás de mim e que me deu um puxão na mochila que levava apoiada só num ombro.
Só dei por ter gritado a plenos pulmões mais tarde, ao rever a cena na minha cabeça. Naquele instante tudo se passou muito rápido. Tão rápido que só momentos depois consegui ver o que estava a acontecer. Alguém me tinha tentado roubar a mochila e o André, sim o André, tinha apanhado o fulano e estava a dar-lhe um enxerto de porrada.
Encostei-me à parede a tremer e passado alguns momentos o André veio ter comigo já com a mochila na mão. Tinha recomeçado a chover mas nem tinha dado conta.
- Estás bem? - perguntou-me.
- Sim. E tu? - ainda não conseguia acreditar que ele tinha dado um enxerto no assaltante e me devolvia calmamente a mochila.
- Estou bem. Vamos para casa.
Não consegui deixar de pensar na ironia da situação e apesar de tudo dei por mim a sorrir e a dizer-lhe com um ar malicioso.
- Para a tua ou para a minha?
Ele sorriu-me de volta percebendo a piada mas não respondeu. Em vez disso acompanhou-me em silêncio.
- Não tinhas ido para casa? - perguntei-lhe.
- Tinha. Mas continuo a ter o péssimo hábito de fumar e desci para comprar cigarros.
Chegámos à porta do prédio e entrámos. Subimos escada acima e chegámos ao meu andar num instante. Abri a porta mas não entrei logo e ficámos parados a olhar um para o outro sem saber bem o que dizer. Pela primeira vez não  estavamos a implicar nem mal-dispostos com a presença do outro no mesmo espaço. E isso era muito estranho.
Reparei que ele estava a sangrar do canto da boca e instintitavemente levantei a mão para lhe tocar, mas ele parou-me a meio.
Respirei fundo e resignei-me. Não éramos nem nunca seríamos amigos, mas pelo menos podia deixar de ser grosseiro.
- Por favor não! - disse-me.
Isso desencadeou-me uma reacção familiar, que foi a de me deixar furiosa com ele.
- Bolas André, pára de ser estúpido! Estás a sangrar porque andaste à pancada com um assaltante por minha causa. Ao menos deixa-me tratar disso.
- Não é preciso. Eu próprio trato disto quando chegar a casa.
- É o mínimo que posso fazer.
- Não.
A sua teimosia deixou-me com a irritação crescente que sempre me fazia sentir.
- Porque é que não deixas de ser parvo ao menos uma vez na vida André? Desde miúdo, nunca foste capaz de ser minimamente simpático para mim. Sempre te comportaste como um verdadeiro idiota, sempre te divertiste a estragares as minhas saidas, os meus arranjinhos... Mas afinal que mal é que eu te fiz?
As perguntas saíram-me da boca em jeito de desabafo, mas não esperei para ouvir a resposta. Simplesmente voltei-lhe as costas e entrei em casa, batendo a porta com força. Mas a porta não fez qualquer estrondo. Pelo menos quando eu a fechei, porque bateu com uns segundos de atraso.
Quando me apercebi, o André puxava-me pelo ombro e encurralava-me a um canto do hall de entrada, numa proximidade física que me deixou ofegante.
Só naquele momento reparei nele. Em como era alto, como tinha ombros largos e braços fortes. Quando me ergueu o rosto para poder olhá-lo nos olhos, vi que as suas mãos eram duras e delicadas. E vi no seu olhar um fogo que não conhecia.
- Mal? Passei a vida a defender-te dos idiotas por quem te apaixonavas ou que te queriam levar para a cama! Das tuas pseudo-amigas que te criticavam pelas costas! A tentar chamar a tua atenção quando tu nem percebias que eu existia!
Abri a minha boca de espanto, e pela primeira vez na vida fiquei sem palavras para lhe responder.
Quando forcei o meu cérebro a raciocinar, analisei toda a minha infância e adolescência e tentei vê-la pelos seus olhos e fiquei espantada. Quando para mim aconteciam desgraças, ele estava sempre por perto. Mas a perspectiva dele ia sempre mais além do que a minha. E enfureceu-me perceber que tinha razão na avaliação do caracter das pessoas de quem acabava por me proteger. Só que eu, emvez de pensar nisso dessa forma, durante toda a minha vida acabei por culpá-lo de tudo o que me acontecera. Porque era mais fácil e habituei-me a que ele estivesse sempre lá.
Um pouco como hoje. Numa situação como a de hoje não imaginava mais ninguém para me safar destes apuros. E ele tinha estado lá, uma vez mais.
A sua mão ainda segurava a minha face, mas a fúria inicial com que me forçara a olhá-lo estava a desaparecer.
Levantei a minha mão e levei-lha de novo ao canto da boca magoado, acariciando-o levemente enquanto murmurava:
- Desculpa André. Desculpa-me! Nunca tinha pensado em tudo isto dessa perspectiva...nem sei o que te diga! Acho que era mais fácil descarregar em ti do que enfrentar a verdade. E devo ter sido mesmo muito má para ti....no entanto, hoje estiveste lá de novo exactamente quando mais precisei de ti. Obrigada.
O seu olhar perdeu as ultimas faíscas de fúria e agora exibia uma outra expressão que já lhe tinha visto várias vezes, mas que não soubera identificar.
Engoli em seco antes de conseguir continuar. Precisava que ele me respondesse a uma pergunta que me aflorava a mente desde miúda.
- Porquê? Se só querias o meu bem, porque me tratavas tão mal e me deixavas acreditar que eras uma pessoa horrível?
- Porque nunca quis admitir isto.
E nesse momento o André beijou-me. Senti a pressão da sua boca contra a minha numa urgência que só o desejo acumulado poderia despertar. As suas mãos ergueram-me à sua altura e as minhas mãos rodearam-lhe de imediato os ombros, num desejo que correspondia em pleno ao seu. Os nossos corpos moldaram-se como se fossemos um só. E então o tempo pareceu entrar em suspenso e nada mais importava à nossa volta.
Foi o beijo da minha vida. O único com significado. O único que realmente mexeu comigo.
Ali mesmo o meu mundo abanou e nunca mais foi o mesmo.
Chovia torrencialmente lá fora, numa calorosa tempestade que combinava com o bater dos nossos corações. Mas ali dentro da minha casa, naquele momento deixou de ser de noite, pois à frente dos meus olhos estava um homem que se tornou o arco-íris da minha vida. E naquela noite fizemos magia, bem ao jeito daquela que só acontece em dias de chuva...






segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

A poetisa da Alma

Margarida era uma poetisa. Não porque escrevesse e fosse famosa, mas porque era uma poetisa da Alma...

Como habitualmente, Margarida saiu de casa logo pela manhã cedo. Ia trabalhar.
Fechou a porta de casa à chave e montou-se na bicicleta. Olhou para o céu e pôs-se a caminho. 
Não tinha andado ainda uns cem metros, quando reparou que tinha um pneu furado. Saiu da bicicleta e encolheu os ombros, parecendo resignar-se, mas o sorriso não lhe saiu do rosto.
Mal acabara de sair da bicicleta, quando começou a chover torrencialmente. Margarida recolheu-se ainda mais para debaixo da varanda do prédio ao pé do qual tinha parado e aguardou pacientemente que parasse de chover.
Ao pé de si estava um jovem. Alto, bem-parecido, mas com um olhar cheio de aflição, visivelmente impaciente por aquela chuva inesperada.
Margarida resolveu sorrir-lhe, disposta a meter conversa para passar um pouco melhor o tempo.
- Parece que estamos aqui presos...
O rapaz, meio desconfiado, meio a medo, lá acabou por responder.
- É, com esta chuva toda e sem chapéu... Uma maçada não é?
Margarida inspirou e sentiu o aroma das flores que estavam à venda na florista da esquina antes de responder. Ao sentir o aroma familiar da terra molhada misturado com rosas sorriu.
- Não, não é.
O rapaz olhou-a espantado, perguntando-se se teria dito alguma asneira, ou se esta seria mais uma lunática como tantas outras que para aí andavam.
Ao vê-lo a olhar para ela de maneira inquiridora, Margarida sorriu ainda mais.
- A beleza do dia está nos olhos de cada um. Você vê um dia mau. Eu vejo simplesmente mais um dia e não faço planos para ele, não crio expectativas. Simplesmente sei o que tenho para fazer. Como e quando o faço é-me indiferente. Assim não me aflijo com horários ou imprevistos.
O rapaz pareceu ficar ainda mais intrigado.
- Mas como pode ser lá isso? Você não tem que ir trabalhar? Não tem um horário a cumprir?
- Tenho, como toda a gente. Mas se o Universo me deu um furo no pneu, como hoje e me pôs debaixo desta varanda no exacto momento em que desatou a chover, em vez de o encarar como uma chatice, encaro-o como uma oportunidade.
- Uma oportunidade? De quê?
- Bem, não me molhei no caminho, não furei o pneu em situação perigosa no meio do trânsito, estou a cem metros de casa e ainda vou a tempo de ir apanhar o autocarro. Quanto aposta? - respondeu-lhe ainda a sorrir.
Nesse exacto momento, um raio de sol brilhou entre as nuvens e apareceu um maravilhoso arco-íris no céu.
O rapaz olhou-a e, pela primeira vez o seu olhar deixou de estar carregado de urgência e exibiu um sorriso.
- E se entretanto conseguir fazer alguém sorrir neste período de espera, então o dia será ainda mais maravilhoso! - continuou Margarida que se agarrou na bicicleta e se começou a dirigir de novo para casa.
O rapaz ainda sorria quando ela virou costas. Só passados alguns momentos conseguiu articular as palavras que lhe assolaram o coração.
- Obrigado! Tenha um bom dia!
Margarida parou por um pequeno instante para se voltar para trás e sorrir de volta.
- Para si também. - respondeu.
Quando voltou a sair de casa para ir para a paragem de autocarro, tinha um rosa branca no degrau da sua porta.
Agarrou nela e cheirou-a, sentindo agora o aroma mais intensamente no seu coração. Ao invés de a deixar em casa, levou-a consigo, carregando as suas boas vibrações junto ao coração.
Nunca se sabia o que estava por acontecer. E aquele doce aroma poderia ser a poesia em falta na vida de outro alguém...


quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Quatro dentaduras e um copo de vinho: parte 4 - "Remédio Santo! - Madalena"

(continuação)

Marta fechou os olhos ainda com um sorriso ao canto da boca, fruto da recordação da história mais marcante da sua vida. Inspirou o cheiro da maresia a apreciou o espectáculo magnífico proporcionado pelo pôr-do-sol.
- A Francisca teria apreciado isto. Ela adorava a praia, principalmente ao entardecer. Espero que, onde quer que esteja, ainda seja possível continuar a apreciar o pôr-do-sol...
A senhora que se chamava Inês acariciou-lhe o braço e nenhuma delas conseguiu proferir qualquer palavra durante alguns momentos.
O empregado de mesa tinha ido servir mais um pequeno grupo de amigos que entretanto tinha chegado.
- Olhe lá, porque raio está um copo naquela mesa com seis dentaduras lá dentro? - perguntou-lhe baixinho um dos membros desse grupo, cheio de curiosidade. 
- É uma longa história. - respondeu ele sorrindo. - E agora, se me dão licença, vou acabar de ouvi-la...
O empregado regressou à mesa das quatro senhoras, que tinham entretanto retomado a conversa e voltou a sentar-se. Reparou que o grupo que tinha acabado de servir tinha ficado de olho na mesa das senhoras, tal como o resto dos clientes que se encontravam na esplanada.
- Ora. onde íamos nós? - perguntou-lhes.
- A Marta já terminou as suas desventuras com o Alberto. Resta apenas dizer que não ficou muito mais tempo na sua vila natal. Pediu guarida à tia até arranjar o seu próprio canto, fez as malas e bateu com a porta à mente tacanha dos seus conterrâneos.
- E foi o melhor que pude fazer! Arranjei um trabalho em Lisboa e resolvi que não ia mais ter que depender de ninguém para garantir a minha própria subsistência. Por isso não voltei a querer relações que envolvessem morar junto. Descompliquei a minha vida, porque os casamentos dão trabalho meu jovem, e tenho sido extremamente feliz assim.
- Bem, acho que posso contar a minha parte da história. - respondeu a senhora que se chamava Madalena.
Todas sem excepção riram baixinho.
- Oh, e que bela história é a tua minha querida... - disse-lhe a sua amiga Inês com um tom sarcástico.
O empregado chegou-se mais para a frente, pronto para ouvi-la e para mergulhar num mundo completamente diferente.
A senhora que se chamava Madalena bebeu mais um pouco de vinho antes de começar a contar a sua história. Pousou lentamente o copo sobre a mesa e começou então a falar.
- Terminei o curso e voltei para a minha cidade natal. O meu pai conhecia o director do jornal local e arranjou-me lá emprego. Mas apesar das minhas boa notas no curso de jornalismo, nunca me permitiu escrever uma só linha para que fosse publicada. O máximo que me era permitido escrever eram as suas cartas e missivas, já que a designação profissional de "assistente de direcção" era o equivalente a "secretária com um misto de empregada doméstica".
Mas os tempos não era ainda muito fáceis no mundo laboral para as mulheres. Os nossos salários eram um pouco inferiores, apesar de já então sermos mais competentes do que muitos dos nossos colegas.
- Ámen a isso também minha querida! - brindou a amiga Inês.
- Houve um dia em que, após as festas de Carnaval da cidade, um dos meus colegas que fazia reportagens de rua, faltou ao trabalho. Tinha ido cobrir o desfile e, aparentemente, tinha celebrado com demasiado entusiasmo.
Em desespero de causa, o director pediu-me para que escrevesse então a reportagem sobre esta matéria, já que eu tinha sido a única a estar presente no local, e que não tinha outra matéria qualquer em mãos.
Agarrei a oportunidade com unhas e dentes, pensando que era a oportunidade de entrar no mundo do jornalismo "a sério" e escrevi uma matéria fantástica. No dia em que foi publicada no jornal, corri de manhã a mostrar o artigo ao meu pai e ia desmaiando quando vi que o artigo estava assinado pelo jornalista que não tinha comparecido ao trabalho naquele dia para o escrever.
O meu pai era um homem fantástico, com uma mente muito avançada para a altura em que viveu. E apesar de ser amigo do director, não gostou nem um pouco do que ele me fez.
Arregaçou as mangas e pôs-se a percorrer todos os seus contactos para ver se me conseguia emprego noutra redacção qualquer, mas sem sucesso. Já mais calma, falei com ele e disse-lhe que não tinha assim tanta importância e voltei ao meu posto de trabalho como era habitual.
Mas não me esqueci do que me tinham feito. O meu colega veio falar comigo, deu-me umas palmadinhas de agradecimento nas costas e voltou para o seu lugar. O director chamou-me e explicou-me que aquela coluna tinha sido sempre daquele colega e blá. blá, blá, não ouvi nem metade do que me disse então.
Eu tinha uma rapariga minha amiga de infância que trabalhava no refeitório da redacção do jornal. Tinhamos andado juntas na escola e também ela tinha ouvido falar do que me tinham feito e não tinha ficado nem um pouco satisfeita. E pelo que tinha ouvido das poucas colegas jornalistas que ali trabalhavam, elas também não.
Um dia, depois do trabalho, juntámo-nos  todas e elaboramos um plano maquiavélico...
- E até hoje não acredito como foram capazes de executá-lo! - interrompeu-a Marta.
Madalena riu-se baixinho até as lágrimas lhe começarem a escorrer pelo rosto.
- Se queres saber, eu também não, mas a nossa juventude dá-nos o privilégio da inconsequência e nos anos 70 não havia qualquer preocupação com a saúde...
- Mas afinal o que é que vocês aprontaram? - perguntou o senhor que estava sentado ao lado do cavalheiro dos olhos azuis.
- A minha mãe tinha um remédio fantástico que desde miúda a vira preparar para dar ao meu pai, para o tratar da sua prisão de ventre crónica. A dose certa fazia o intestino funcionar. Uma gota a mais e era vê-lo a correr para a casa de banho em grande aflição. Era algo eficaz mas que exigia um certo cuidado.
Uma das colegas fez anos na semana a seguir e comprámos uma garrafa de espumante para celebrar ao final do dia na redacção. O director abriu a garrafa e passou-a à Bernardete para que servisse o espumante nos copos. Estavam todos distraídos com o bolo de aniversário que a aniversariante distribuía e eu fui ajudar a Bernardete com o espumante, passando os copos a todos os colegas.
Foi uma celebração e pêras e foi toda a gente feliz e contente para casa. As mulheres mais do que os homens e não, meu caro, tamanha alegria não se devia ao álcool no sangue...
O empregado olhou para ela, com ar incrédulo e abriu muito a boca com ar de espanto, enquanto era atingido pelo evidente desfecho da história.
- Suas diabretas, deram laxante ao director do jornal?
Madalena sorriu abertamente, com um brilho travesso no olhar.
- E a todos os colegas machos da redacção!
A gargalhada foi geral. Quem observasse de longe aquele estranho grupo tão heterogéneo ficaria intrigado com um esplanada em peso a rir.
O empregado do bar desistiu de fingir que estava a trabalhar e juntou-se a eles. Puxou uma cadeira e sentou-se de frente para o bar, para ver quando chegasse algum cliente.
- Bem vindo de volta meu caro. Mais um intervalo? - perguntou-lhe a senhora que se chamava Inês.
- Não. Mas não resisti a vir ouvir o que se estava por aqui a contar... - respondeu, sentindo-se de repente um pouco embaraçado.
- Tens a certeza de que vais aguentar? Aqui a Sra. Madalena acabou de dar laxante a todos os homens que trabalhavam com ela no jornal... - disse-lhe o colega.
O empregado do bar abriu um sorriso rasgado.
- A sério? Conte-me tudo!
- Bem, o resultado disso - recomeçou Madalena - foi que todos eles ficaram "de cama" no dia a seguir, com uma estranha virose que só atacou os homens. Uma redacção de um jornal não pára e como tal, assumimos as rédeas do serviço com tamanha competência, que o director ficou deveras impressionado.
Eu tive a oportunidade de, durante dois dias, assinar os meus próprios artigos e o dono do jornal veio pessoalmente felicitar-nos pela forma profissional como trabalhámos. 
- E foi promovida a jornalista? - perguntou a rapariga do jovem casal.
- Não minha querida. O homem era um pulha e não deu o braço a torcer, apesar de eu lhe ter feito a vida negra a partir de então... Entretanto, o dono do jornal tinha um filho mais ou menos da minha idade. Um playboy cuja profissão era supervisionar os negócios do pai tão bem quanto lhe gastava a fortuna! Chegou-lhe aos ouvidos o meu caracter obstinado e quis saber mais sobre a assistente do director que lhe fazia a vida negra mas de quem ainda assim ele não queria abrir mão.
Acho que ficámos fascinados um pelo outro. Éramos ambos inteligentes e mordazes, com uma mente engenhosa. Ele começou a andar atrás de mim e em breve começámos a namorar. Acredito piamente que então ele me amasse à sua maneira e eu também. Tinhamos uma vida social activa e cheia de gente bonita e bem sucedida. Só que com o passar do tempo não veio nem o pedido de casamento nem a oportunidade de chegar ao tão ambicionado mundo do jornalismo "a sério"...
Até que houve um dia que me fartei. No fim de mais uma das nossas festas de arromba, eis que resolvi confrontá-lo. Parecia que lhe tinha feito a maior ofensa do mundo! Ao que parece, ficou a pensar que eu estava com ele só pela oportunidade de ser promovida e de ainda poder vir a dar o golpe do baú...
Não demorou nem dois dias a dar-me com os pés, da sua vida e do jornal. Obrigou o director a despedir-me e desapareceu do mapa.
Nessa altura percebi que com ele se tinha ido toda a minha vida social e as falsas amizades, assim como a minha oportunidade de subsistir sozinha na vida. E foi então que a Eugénia morreu.
Eu estava um caco e quando nos reunimos e resolvemos fazer o pacto de sermos felizes. No dia a seguir fui bater à porta de um dos principais jornais do país para pedir emprego. Um golpe de sorte fez com que o ex-namorado de uma das minhas ex-colegas de trabalho me reconhecesse. Ele tinha ficado a saber do que se tinha passado no meu antigo emprego - desde a usurpação do meu trabalho até ao modo como tinha sido dispensada - e intercedeu por mim. Arranjei emprego, primeiro com matérias muito modestas, mas que me permitiram ir conquistando o meu lugar.
Nunca mais consegui dar o meu coração em pleno a um homem. O que me restou daquela relação intensa foi o medo de me voltar a entregar. Assim, quando pressentia que as coisas iam ficar demasiado sérias, pisgava-me! Até que há cerca de uns quinze anos conheci o meu actual companheiro de vida. Continuamos a não ser casados e oficialmente nem moramos juntos, mas na verdade somos inseparáveis. 
- E como o conheceu?
- Atropelei-o!
- Ora conte lá...
- Bem, essa seria outra longa história meu querido, mas para a abreviar deixe-me que lhe diga apenas que eu ia de bicicleta para o trabalho e ele atravessou sem olhar, precisamente no momento em que eu estava a olhar para o lado para cumprimentar uma amiga... Fiquei tão atrapalhada e nervosa que ele, que não sofreu mais do que umas nódoas negras nas pernas, me arrastou para uma pastelaria para me dar um chá para ver se me acalmava. E nunca mais nos separámos desde então.
O empregado do bar sorriu, tentando imaginar quem seria o homem corajoso para domar o coração daquela mulher furacão há tantos anos.
- E porque nunca casaram? - perguntou o cavalheiro de olhos azuis.
- Quem disse que não casámos meu caro?
Madalena apontou para o seu próprio coração e continuou:
- Aqui sou só dele e ele é só meu. Não preciso de um papel que ateste isso mesmo! E se não moramos oficialmente juntos é porque assim conseguimos manter acesa a faísca que a monotonia de um casamento destrói. 
- Mas ele nunca a pediu em casamento? - perguntou o rapaz do jovem casal.
Madalena sorriu docemente.
- Todos os dias das nossas vidas. E todos os dias lhe respondo que não.
- Mas porquê? Quero dizer, para além da papel passado e assim, porque nunca pensou em aceitar?
- Porque assim continuamos a esforçar-nos. Eu esforço-me para que ele me peça todos os dias em casamento. Ele esforça-se para que eu finalmente o aceite.
A rapariga sorriu, num rasgo de entendimento. 
As quatro senhoras brindaram de novo e desta vez todas as pessoas à sua volta as acompanharam. 

(continua)

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Quatro dentaduras e um copo de vinho: parte 3: "O caminho para a felicidade - Marta"

(continuação)

- Senhoras, permitem-me que me junte a vós?
Era o empregado do bar que finalmente estava na hora da sua pausa.
- Se aguentar ouvir-nos a falar, então seja muito bem vindo! - disse a senhora que se chamava Beatriz, com um sorriso travesso no olhar, que não passou despercebido ao empregado do bar.
- Minhas senhoras, pela audiência que já conquistaram à vossa volta, parece-me que ouvir-vos falar não será o problema. O pior será ter que sair daqui. - respondeu ele com uma piscadela de olho enquanto puxava uma cadeira para se sentar.
- Muito bem. Estávamos nós a contar que a morte da nossa amiga Eugénia serviu como um catalisador para as nossas próprias vidas. - disse a senhora que se chamava Beatriz, enquanto olhava um pouco à sua volta e percebia que as pessoas que tinham chegado se tinham sentado bem próximas e estavam realmente a ouvir a história.
- É verdade. Estávamos no início dos anos 80. Todas morávamos longe. Só tínhamos contacto através das cartas que íamos escrevendo ou de telefonemas, que eram esporádicos, porque nem todas tinham telefone e porque as chamadas eram caras. Apenas sabíamos que cada uma de nós tinha seguido o seu rumo e no dia em que nos juntámos de novo percebemos que nenhuma de nós tinha querido deixar transparecer o que realmente se passava. Acho que era a forma de conseguirmos manter a ilusão para nós próprias, percebe? Quando não se admite para nós, fica mais fácil manter a fachada para quem está de fora. E assim fomos criando uma vida de ilusão, com uma grande carapaça que se desmantelou por completo na altura em que nos reencontrámos e nos olhámos nos olhos pela primeira vez em muitos anos. - começou a senhora que se chamava Marta.
Bebeu mais um golo de vinho e depois continuou, enquanto pousava lentamente o copo sobre a mesa.
- Como lhe disse nunca casei. Mas quando nos reencontrámos estava noiva de um moço da minha terra. Ele era um excelente rapaz. Trabalhador. Honesto. Teria sido um bom marido, sem dúvida.
- O que lhe aconteceu? - perguntou um dos membros do grupo de quatro amigos.
- Oh, nada, não lhe aconteceu nada! - respondeu, dando ênfase a esta última palavra.
E as quatro riram à gargalhada, deixando a audiência completamente baralhada.
- Eu explico. O moço já andava atrás de mim desde a escola primária. Eu nunca lhe tinha achado realmente piada mas era das poucas moças que conseguia conversar com ele. Fomos crescendo e seguimos rumos um pouco diferentes, já que rapazes e raparigas não tinham aulas na mesma sala. No entanto, os intervalos eram comuns e as brincadeiras na rua também. Assim, ao longo da nossa adolescência o Alberto e eu tornámo-nos amigos. Eu sabia que ele ainda tinha uma paixoneta por mim, mas para além da minha amizade não havia nada da minha parte que lhe pudesse dar a mínima esperança.
Ele não era bem-parecido, não era charmoso, não tinha nenhum atributo em especial, mas era muito bom rapaz. O genro que qualquer mãe de então sonhava para a sua filha. E a minha mãe não era diferente das outras, coitadita.
Sempre me perguntei porque razão ele não se juntava muito aos outros rapazes para brincar e preferia passar o tempo comigo e com as minhas bonecas, mas pensei que era apenas por timidez  e tentava não pensar muito no assunto.
Os anos foram passando, nós fomos crescendo e eu fui para a faculdade, bem longe de casa. Tinha uma tia em Lisboa e fiquei instalada em casa dela durante os quatro anos do curso. Solteira e habituada a estar longe da terra, a minha tia era um pouco mais permissiva do que a minha mãe. Posso dizer que estes foram anos de ouro!
Quando voltei à minha terra, depois de quatro anos de loucura, eu tinha deixado de ser a moça simples e ingénua. E virgem.
O Alberto voltou à carga. No fundo não tinha mudado em nada durante a minha ausência e nada tinha mudado para ele. As raparigas lá da terra continuavam a evitá-lo e os rapazes também não lhe ligavam nenhuma. E ele não fazia qualquer esforço para mudar isso. Mas assim que percebeu que eu tinha vindo para ficar de vez tornou a andar atrás de mim.
Eu continuava sem sentir nada por ele e depois do que tinha vivido nos últimos quatro anos, de toda a gente que conhecera, ele era a pessoa mais chata do mundo...
- Então porque ficou noiva dele? - perguntou o cavalheiro de olhos azuis.
- Acho que entre a insistência do Alberto e a da minha mãe as minhas forças de resistência acabaram ali mesmo. Eu tinha começado a trabalhar e era tão dedicada ao que fazia, sempre a tentar provar as minhas capacidades, que a minha vida social caiu a pique. Com o tempo, as minhas amigas de lá foram casando, tendo filhos e eu continuava solteira e sem perspectivas de arranjar um candidato a marido que agradasse aos meus pais.
- É claro que ias fazendo tentativas pelo meio... - interrompeu a senhora que se chamava Madalena, com uma sonora gargalhada.
- Oh, se ia! E quando finalmente me resignei e aceitei a proposta de casamento do Alberto, sempre pensei que tudo o que ainda não sentia por ele apareceria quando finalmente tivéssemos sexo.
O cavalheiro de olhos azuis riu baixinho com um brilho travesso no olhar, como se isto lhe lembrasse a sua própria juventude, mas não a interrompeu.
- E foi isso que aconteceu? - perguntou o empregado do bar, olhando de novo para o relógio pois queria saber o fim desta história antes de regressar ao serviço.
- Bem, conforme eu dizia há pouco, não aconteceu nada. O Alberto continuou igual a ele próprio: cortês, cavalheiro, educado, respeitador...e passaram-se quase dois anos sem que tentasse mais do que um beijo quando chegava ao pé de mim e outro quando se ia embora. Os beijos que eu fazia os meus bonecos darem em criança eram menos castos do que os dele! O máximo que consegui do Alberto foi que a sua mão tocasse na minha e foi porque eu tomei a iniciativa. Dois anos nisto e começava a ficar angustiada. Porque quando não temos uma vida sexual activa e não sabemos como é, não é assim tão grave meu rapaz. O pior é começar e gostar do que se faz,  e nisso os tempos não mudaram nem éramos assim tão diferentes!
Até que um belo dia, numa noite quente de final de Verão, depois do baile da festa lá da terreola, o Alberto me vai levar a casa. Nós morávamos numa casa que ficava um pouco fora do centro da vila, e como tínhamos muitos animais, ao redor havia imensas dependências: um pequeno celeiro, estábulos, galinheiros...
Eis que nessa noite, aproveitando o facto de a minha mãe ter vindo mais cedo e de a nossa chegada ter sido discreta, empurrei o Alberto para dentro do celeiro. Pespeguei-lhe uns beijos mais elaborados, dei-lhe uns amassos, rocei-me até mais não e...nada! O pobre coitado, depois da surpresa inicial, ainda tentou corresponder de alguma forma, mas simplesmente não foi capaz.
Como devem calcular, foi uma grande frustração para mim. Ao princípio pensei que a culpa era minha e fiquei completamente devastada. Mas quando ele fugiu daquele celeiro fui atingida por um raio de luz: o meu noivo era impotente!
Como é que eu podia pensar em continuar aquele noivado? Eu não o amava, não ia ter sexo na minha vida, mas como raio ia eu dizer à minha mãe que o meu noivo não conseguia ter uma erecção? Era tabu falar destas coisas! Se a minha mãe soubesse que me tinha tentado enrolar com o Alberto ainda lhe iria agradecer o facto de não ter conseguido consumar o acto! Estava completamente perdida.
Entretanto, ele arranjou uma desculpa esfarrapada sobre andar "cheio de trabalho fora dali" e passou um mês sem me aparecer à frente. Não que me tivesse importado, mas começava a ser tema de conversa nos cafés. E num desses zum-zuns ouvi uns boatos...
Entretanto soube da morte da Eugénia. Meti uma semana de férias e rumei a Lisboa, onde voltei a pedir guarida à minha querida tia, que me recebeu de braços abertos.
Quando nos juntámos as cinco de novo e lhes contei o que tinha acontecido e o boato que tinha ouvido, parecia que me tinha saído uma tonelada de cima. Acabámos a noite a rir à gargalhada às custas deste episódio. A  pobre Francisca ainda não conseguia acreditar como raio tinha eu conseguido entrar numa situação daquelas e tentou arranjar mais de mil maneiras suaves para eu conseguir dizer à minha mãe que o noivado tinha acabado!
Entretanto quando resolvemos fazer o nosso pacto rumo à felicidade, decidi que ia ter que fazê-lo que qualquer forma e que não havia volta a dar ao assunto. Assim, parti rumo à minha terra, com a minha auto-estima de volta, assim como a minha vontade de viver. Entrei em casa e mal tive tempo de pousar as malas. Chamei a minha mãe e disse-lhe que não ia mais casar com o Alberto.
Pobre mãe, que desatou num pranto. Mas eu estava decidida e percebi que o pranto não passava de chantagem emocional. Então perguntei-lhe "A mãe quer ter netos?", ao que ela respondeu "Mas é claro que quero! Que raio de pergunta é essa?". Então disse-lhe simplesmente: "Pois do Alberto não seriam e por favor não me peça para entrar em pormenores!".
A minha mãe não me perguntou mais nada. Secou as lágrimas e levou dois segundos a fazer o luto pelo suposto genro perfeito. Até hoje não sei o que disse ao meu pai, mas ele nunca mais perguntou pelo Alberto. E o pobre Alberto, depois de eu lhe dar com os pés, enfiou-se num seminário e tomou votos.
- Não me diga que foi para padre?
- Digo pois. Ainda hoje é o padre da paróquia lá da aldeia! Dizem as más linguas que foi pelo desgosto. Pois eu digo que naquela noite descobri que o Alberto é gay.Os tempos eram outros e nem pensar em "sair do armário".
Ouviu-se uma gargalhada geral.
- E você, depois dele nunca mais teve nenhuma relação que fosse para durar? - perguntou o rapaz do jovem casal.
- Oh, claro que sim meu caro. A melhor relação que podemos ter, primeiro é que temos connosco próprios e depois é a da amizade. E estas amigas enchem-me até à alma...
- Eu queria dizer, com homens.
- Eu sei - respondeu-lhe Marta com uma piscadela de olho - e tive algumas relações, se é que lhes podemos chamar assim, mas sempre tive o juizo de os mandar ir comer e lavar as camisas a casa das mães.
- Ámen a isso! - responderam as outras em coro em mais um brinde.
O empregado do bar levantou-se pois estava na hora de voltar ao seu posto de trabalho. Levava o coração cheio de uma fantástica história de vida e deu consigo a desejar não ter movimento ao balcão para se escapar de mansinho e não perder o resto que ainda estava por contar.

(continua)

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Quatro dentaduras e um copo de vinho - parte 2: "A Promessa"

- Estávamos no fim do Verão quando as aulas começaram. Lembro-me tão bem como se fosse hoje, porque estava morta de medo! Sabe jovem, os meus pais moravam numa pequena aldeia e era o meu primeiro dia longe de casa. Eu era a menina da mamã e tive direito a uma excelente educação, o que era pouco habitual na altura. Mas a faculdade era longe e de repente vi-me sozinha no meio de uma grande cidade - a velha senhora, que exibia uma longa cabeleira negra com uma madeixa prateada na franja riu baixinho - e só o recinto da escola tinha mais gente do que a minha aldeia! Eu estava assustadíssima, mas absolutamente radiante.
- E foi então que te apanhámos! - disse outra, soltando uma sonora gargalhada, sendo seguida pelas outras.
- Literalmente. É que tenho a tendência para ficar descoordenada quando estou nervosa e foi assim que em pleno recinto cheio de gente dei um grande, grande tralho!
O empregado pareceu surpreendido com o uso desta expressão de calão, que parecia não combinar com o ar quase majestoso e doce da senhora, e percebeu que por detrás desta aparência havia mesmo muito para descobrir.
- Naquela altura em que a vimos no chão tivemos todas a mesma reacção - continuou outra delas - e parece que fomos atraídas por um íman, tal foi a rapidez com que a rodeámos, apanhámos e disfarçámos a situação.
- Oh céus, eu estava vermelha que nem um tomate, quase com as lágrimas nos olhos tal era a vergonha, mas estas miúdas salvaram-me de boa! 
- Em primeiro lugar certificámo-nos que ninguém a tinha visto. Depois ficámos a olhar umas para as outras, já que não nos conhecíamos de lado nenhum, e percebemos quão estranha era a situação.
- Ninguém lhe perguntou se se tinha magoado com a queda? - quis saber o empregado.
- Não!
A gargalhada foi geral e espelhava bem o que se tinha passado na altura.
- Éramos jovens meu caro e o orgulho e a dignidade faziam feridas maiores no ego do que um joelho raspado!
- A partir desse momento tornámo nos inseparáveis. Foram quatro anos da mais pura loucura e amizade, recheados de aventuras e desventuras.
- Mas eis que chegou o fim do curso e acabámos por nos separar.
O empregado notou que apesar de estarem as quatro a contar a sua história, ainda assim pareciam falar a uma só voz.
- Mas porquê? - perguntou- Se eram assim tão próximas, o que se passou?
- Nada de especial meu querido, simplesmente voltámos a casa. Olhe bem para nós. Somos de uma geração diferente da sua. Todas saímos das nossas aldeias, vilas ou cidades. Não havia meios de comunicação como vocês, jovens, os conhecem quase desde que nasceram. Não tinhamos computadores, internet, telemóveis... Tudo era mais distante e complicado. 
- Mas deixaram de se ver e de se falar por completo?
- Não, não por completo, mas as notícias começaram a escassear com o passar dos anos. Só nos conseguíamos comunicar por carta ou por telefone, mas no fundo acho que quando estamos na década dos vinte estamos tão preocupadas em construir "uma vida" que não nos apercebemos que a vida acontece, quer nós queiramos quer não! Durante a adolescência e o início da idade adulta, muitas vezes rebelamo-nos contra aquilo que a sociedade nos impõe como sendo "politicamente correcto" ou "socialmente aceite", mas quando chegamos ao vinte e poucos anos, saímos do mundo dos estudos e entramos no mundo do trabalho, temos tendência para pensar que aí começa a nossa vida "a sério" e então temos tendência a esquecer tudo o que ficou para trás.
A velha senhora serviu-se de mais um copo de vinho e bebericou um pouco antes de continuar.
- Eu casei e tive dois filhos. Um casal.
- Eu nunca casei. Graças a Deus tive juízo antes de cometer o maior erro da minha vida.
- Eu fui casando várias vezes ao longo dos anos até que finalmente acertei.
- Eu nunca casei, mas tive um filho de um homem fantástico.
As quatro ergueram as taças ao mesmo tempo e falaram a uma só voz.
- E quando nos reencontrámos voltámos a viver.
O empregado olhou para um jovem casal que tinha acabado de se sentar. Pediu licença quando se levantou, mas assegurou-lhes que voltava num instante para acabar de ouvir a história.
Acabou de servir os dois grandes cafés com natas que eles tinham pedido e voltou a sentar-se junto das senhoras.
- Mas o que aconteceu?
- Uma tragédia.
- Então?
- O nosso grupo era de seis. A Inês (que sou eu), a Marta, a Beatriz, a Madalena - disse apontando para si própria e seguidamente para cada uma das amigas - e depois havia a Francisca e a Eugénia. Duas delas já não estão entre nós, uma delas há mais de vinte anos.
A velha senhora de ar majestoso com a madeixa no cabelo segurou na mão da que se chamava Inês e foi ela quem continuou a história.
- A Eugénia era uma das mais divertidas do grupo. Moça de boas famílias, criada na alta sociedade do Porto, veio estudar para Lisboa, onde o pai tinha familia e alguns negócios. Ao pé da família era a moça mais casta do mundo, mas entre amigos era a alma da festa. E foi assim que conheceu o António.
- Em pouco tempo tornaram-se inseparáveis. Unha com carne. Um só respirava se estivesse próximo do outro. - continuou a que se chamava Madalena. - A Eugénia era uma moça linda: alta, ruiva, com uns grandes olhos verdes brilhantes de alegria e umas pernas lindas de morrer! O António era um moço que combinava bem com ela: alto e lindo. Parecia um actor de fotonovelas! Formavam um casal e pêras.
- Soubémos que se casaram mal acabámos o curso. O António era cerca de dois anos mais velho que nós, terminou o curso primeiro e logo começou a trabalhar para o pai da Eugénia. Como também vinha de boas famílias não houve qualquer impedimento a esta união. Como lhe dissemos, os anos foram passando e, embora continuássemos a ter notícias umas das outras, estas eram cada vez mais esporádicas. 
- Mas com os anos todas nós nos apercebemos que o brilho da Eugénia ia esmorecendo cada vez mais. As cartas perderam a vida de outrora. Já não contavam aventuras e segredos, como se a sua vida se resumisse às rotinas de casa e aos filhos. Logo ela, uma das alunas mais brilhantes do curso, para quem se previa uma brilhante carreira profissional, resumir a sua vida a fraldas e fogão!
- A voz também deixou de ser igual. Aquele timbre alegre, com uma gargalhada fácil, perdeu-se. Quando falei com ela pela última vez, foi para me contar que esperava o quarto filho. A alegria na sua voz era forçada, quase como se estivesse a ler um guião, quase como se se convencesse a si própria de algo. E foi então que tudo aconteceu.
A senhora que se chamava Inês interrompeu o seu discurso.
- Perdão meu caro, mas acho que estão ali mais uns clientes à espera.
O jovem pediu licença, ainda com um ar meio absorto, pois encontrava-se completamente mergulhado numa época distante, onde em vez de gel se usava brilhantina, numa sociedade que oscilava perigosamente entre o socialmente correcto e a insanidade total.
Levantou-se e dirigiu-se à mesa de trás, onde um grupo de quatro amigos na casa dos trinta anos acabava de se sentar. Anotou o pedido e dirigiu-se ao bar para ir buscar os cafés e os pastéis de nata.
O seu colega dirigiu-se a ele com um tom meio zombeteiro, piscando o olho:
- Não me digas que estás outra vez na conquista? Não achas que estas são um pouco velhas demais para ti?
O empregado sorriu e respondeu:
- Hoje não sou eu que estou a conquistar. Hoje fui completamente conquistado. Quando fores fazer o teu  intervalo junta-te a nós e vais perceber...
Voltou então para a mesa dos quatro amigos e serviu-lhes tudo o que tinham pedido. Após se certificar que não precisavam de mais nada, voltou a sentar-se junto das quatro senhoras e pediu-lhes que continuassem.
- Mas afinal o que aconteceu à vossa amiga Eugénia?
- Morreu dois dias depois de termos falado. - os olhos de Inês encheram-se de lágrimas mas nem uma lhe escorreu pela face - A versão oficial é que terá caído das escadas e como começou a sangrar, teria pegado no carro para ir ao hospital. Mas nós sabemos que não foi isso que realmente aconteceu...
- Não? Então como morreu ela?
- A Eugénia tinha uma irmã mais nova, muito ligada a ela. No dia em que me ligou para dar a notícia, só quase uma hora depois conseguir perceber uma única palavra, tal era o pranto em que se encontrava. Foi um choque imenso como deve calcular.
- Precisamente dez anos depois do último dia de aulas foi o seu funeral. E só nesse dia nos reencontrámos todas.
- Chorámos o dia todo, uma vezes da alegria de nos revermos, mas sobretudo da enorme tristeza de termos perdido uma irmã do coração.
- Depois do funeral juntámo-nos com a irmã da Eugénia e ficámos a conversar mais um pouco junto à campa. Os três filhos da nossa amiga afastaram-se com a avó materna e o pai. A filha do meio era a cara da mãe.
- A irmã dela contou-nos que a Eugénia era extremamente infeliz. Foi como se nos tivessem atirado um balde de água gelada em cima, mas acho que lá no fundo já desconfiávamos que alguma coisa não estava bem. A vida que ela levava simplesmente não combinava com a jovem fogosa e cheia de vida que tinhamos conhecido em tempos!
- Afinal o António não era o príncipe encantado que parecia. Mal casaram, proibiu a Eugénia de trabalhar e confinou-a a cuidar da casa e dos filhos que lhe ia fazendo. A irmã dela confidenciou-nos que o fogo da Eugénia acabou quando, após ter tido o primeiro filho, ainda não estava recuperada do parto e ele a violou. Foi o princípio do fim da sua vida. A partir daí foi um descalabro total e do desrespeito moral começou a haver abusos fisicos. Violência, violação...tudo o que lhe possa passar pela cabeça. A única coisa que a mantinha de cabeça erguida eram os filhos.
- Constou-se que ela tentava  tomar medidas contraceptivas, mas sabe como as coisas eram naquela época. E o António tinha olhos e ouvidos em todo o lado! Os ciúmes tornaram-no obsessivo e violento. A pobre Eugénia não podia sair de casa sozinha, não podia escrever-nos sem que ele aprovasse a carta, não podia ligar-nos, não podia atender o telefone na sua ausência...E como cão de guarda, lá estava a mãe dele.
- Nós sabíamos que havia uma razão muito forte para nunca termos gostado dela!
- Pobre coitada! Mas afinal o que aconteceu no dia em que ela morreu? - perguntou o rapaz do casal que se tinha sentado na mesa ao lado. Só depois se apercebeu que estava a ouvir a conversa alheia e a meter o nariz onde não era chamado e ficou subitamente engasgado. - Desculpem, mas não resisti.
As quatro senhoras e o empregado desataram a rir à gargalhada e o colega do bar mirou-os com curiosidade, olhando para o relógio de pulso para ver se ainda faltava muito tempo para a sua pausa.
- A Eugénia perdera o fogo mas não a astúcia que a caracterizava. - disse a que se chamava Beatriz. - Só a irmã sabia de tudo o que se passava, mas não havia grande coisa que pudesse fazer para ajudá-la. Os tempos eram outros e só de pensarem em divórcio era um escândalo. Como não podia falar a viva voz, foi mantendo diários, que escrevia ás escondidas, nos raros momentos em que estava sozinha. Criou um esconderijo secreto lá em casa onde os guardava religiosamente ao longo dos anos. A irmã entregou-nos os diários a nós, pois essa era a vontade da Eugénia e disse-nos que no dia em que ela ligara à Inês para lhe contar que estava grávida, o António lhe batera porque percebera a falta de entusiasmo dela ao telefone. Para ele tudo era motivo para desconfiança e o pretexto ideal para lhe bater. Naquele dia bateu-lhe com tanta raiva que o filho mais velho se pôs no meio. Então bateu nele também. E depois foi-se embora. Foi a gota de água! A Eugénia tinha uma mala de emergência já feita. Agarrou nela e nos três filhos, derrubou a sogra que a tentava impedir de sair e pôs-se a caminho do Porto. O António tinha-a ensinado a conduzir na faculdade, mas depois de casarem quase nunca tinha conseguido pegar no carro, a não ser quando ele estava demasiado bêbedo para trazer a familia de volta para casa. Estava uma noite chuvosa e a estrada não tinha o piso nas melhores condições. Nervosa e ferida, começou com uma enorme hemorragia que se foi agravando até acabar por desmaiar. Esvaiu-se em sangue ali mesmo dentro do carro, à frente das crianças.
- Pobre coitada! Que sofrimento deve ter sido... - comentou a rapariga do jovem casal.
Uma das velhas senhoras sorriu pacificamente e a jovem notou que todas sem excepção exibiam um misto de ternura e de orgulho no olhar.
- Nós gostamos de pensar nela não como uma coitada, mas como a nossa Joana D'Arc! Uma heroína, já que deu a sua vida mas salvou as nossas...
O empregado franziu o sobrolho como se estranhasse aquelas palavras.
- Sim meu jovem, ela salvou-nos a todas. Como lhe dissemos, a irmã da Eugénia entregou-nos os seus diários. Ela escrevia-os para nós, em forma de cartas, de conversas, ela fazia-nos as suas confidências mais profundas. Juntámo-nos para os lermos em conjunto e chorámos o dia todo. Depois percebemos que era um grande erro continuarmos separadas e sem nos contactarmos durante tanto tempo.
- Naquele dia contámos tudo das nossas vidas umas às outras e foi então que fizemos uma descoberta surpreendente...
- E que descoberta foi essa?
- Que, apesar do que espelhávamos para fora, e até umas para as outras, éramos todas profundamente infelizes.
Nessa altura o empregado do bar aproximou-se deles, trazendo uma bandeja com mais alguns cafés, que serviu a mais um pequeno grupo que tinha acabado de se sentar.
O empregado pediu desculpa aos clientes, que eram habituais, mas estes não se importaram nem um pouco que ele não o tivesse visto.
- Não tem problema. Vejo que está em boa companhia. - respondeu um deles, piscando o olho que tinha uma cor azul cor do mar na direcção das senhoras.
O empregado sorriu e disse:
- Senhoras, acabaram de derreter mais um coração.
Elas riram com gosto e brindaram na direcção deles, em jeito de cumprimento.
- Mas e então, o que aconteceu depois?
- Bem, digamos que fizemos uma promessa a nós mesmas: a de que a morte da Eugénia não seria uma tragédia, mas um hino à vida. A de que a sua luta não teria sido em vão. E que os apelos que nos fazia ao longo das páginas dos seus diários seriam o início de algo de novo nas nossas vidas: o caminho para a felicidade.

(continua)







quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Sentir

Conduzo pela estrada fora
Olho para os montes e vales à minha frente
Tudo verde, enorme e selvagem
Só me apetece sair do carro e voar
Abro as asas da imaginação
Sinto a ansiedade a sair
Tenho vontade de gritar
Espernear, correr até cair
Cair de cansaço, tombar no chão
Mas sentir algo no meu coração
Não é de pedra, nem de madeira
Quero sentir-me viva outra vez
Não quero apenas respirar
Quero viver, quero vibrar!
E quando trago a imaginação de volta
Fecho as asas e aterro no chão
Mas não caio, não tombo nem morro
Porque cá dentro sinto
E não tenho uma pedra no meu coração.

I have a hole in my heart

I scream your name
In the seven winds
But nobody answers me
I’m feeling thorn apart
My reality
Because I know you’re there
Out there, somewhere
Only waiting for me
You are my other half
The other side of my heart
But the Gods still don’t want us to meet

And so I’m hurt
Because I’m feeling
My heart is broken
My soul is screamin’
But I keep on dreamin’
That some day you’ll answer me

I write your name in the clouds
Hoping you see the way
To the hole on my heart
You are my Angel
Your wings spread high
But still they don’t reach me

And so I’m hurt
Because I’m feeling
My heart is broken
My soul is screamin’
But I keep on dreamin’
That some day you’ll answer me

I dive in your eyes
Like a mermaid in the sea
Sailing with the winds
That you bring for me
I swim to your heart
Hoping this time I finally reach you
And pray to the Gods
That against all odds
I can finally meet you

Quatro dentaduras e um copo de vinho - parte 1: "Até à bengala!"

Estava uma tarde de Domingo fantástica, bem característica do final de Verão.
O sol brilhava, fazendo com que a água do mar tomasse tons de prata e fogo, em suaves ondulações ritmadas. Soprava uma brisa suave que atenuava o calor abafado que ainda se fazia sentir.
O empregado de mesa dirigiu-se às quatro senhoras que tinham acabado de se sentar lá fora na esplanada.
- O que vão desejar? - perguntou.
- Queremos uma garrafa de vinho verde bem fresca por favor. - pediu uma delas.
- Muito bem. As senhoras vão desejar mais alguma coisa? 
- Não. Traga-nos apenas a garrafa de vinho verde mas precisamos de um copo a mais.
- Aguardam mais uma pessoa? Querem que coloque mais uma cadeira na mesa? - perguntou solicitamente o empregado.
- Não obrigada, já não esperamos mais ninguém para se sentar connosco. - o olhar da velha senhora foi trespassado por um rasgo de tristeza, que logo se transformou num doce sorriso. - Mas continuamos a querer mais um copo por favor. Mas esse copo tem que ser grande,
- Certamente. Volto já com o vosso pedido.
O empregado dirigiu-se à zona do bar para fazer o pedido ao seu colega.. Enquanto aguardava que estivesse tudo pronto para levar para a mesa das quatro senhoras, encostou-se ao balcão a observá-las. Havia algo nelas que o atraía, como se de um íman se tratasse.
Aparentemente não teriam nada de especial à primeira vista, mas delas se emanava uma aura luminosa, uma sensação de paz e de tranquilidade que não conseguia explicar.
Estavam todas na casa dos sessenta anos, mas a idade não lhes levara a beleza. Só então reparou que todas se vestiam de branco e deu consigo a perguntar-se porquê.
O colega estendeu-lhe a bandeja com o pedido, mas teve que o chamar para que ele o notasse, pois estava completamente absorvido por aquelas quatro mulheres.
Dirigiu-se então para a mesa, onde colocou a garrafa de vinho ao centro e distribuiu os copos vazios pelas senhoras. O quinto copo, colocou-o junto à garrafa, antes de servir o vinho nos copos.
As senhoras agradeceram e ele retirou-se. Como havia pouco movimento, não se afastou muito. Tinha curiosidade em saber porque tinham elas pedido um copo a mais.
Ficou boquiaberto quando todas sem excepção retiraram das suas malas quatro pequenas dentaduras e mais duas de dentro de uma pequena caixa de cetim e as enfiaram no copo grande a mais que tinham pedido. Em seguida, uma delas agarrou na garrafa e despejou o vinho dentro do copo das dentaduras. Todas sorriram comum rasgo de saudade no olhar. 
Em seguida, ergueram os copos num brinde, onde falaram a uma só voz:
- Até à bengala!
E desataram a rir à gargalhada em seguida.
A curiosidade do empregado não lhes passou despercebida. Estavam acostumadas a dar nas vistas sempre que estavam juntas.
- Quer saber porque temos este ritual meu rapaz? - perguntou uma delas.
- Confesso que estou curioso, sim. - respondeu ele.
- Sente-se. É uma longa história, que começa com seis jovens raparigas que se conheceram no primeiro dia de aulas da faculdade e que conseguiram manter uma amizade fantástica ao longo das suas vidas. Fizeram um pacto entre elas em como seriam amigas até à bengala e que, mesmo depois de velhas, quando já não pudessem beber álcool por causa do excesso de medicamentos da idade, ainda assim mergulhariam as suas dentaduras em vinho verde. Duas delas já não estão entre nós. Fomos levar uma amiga até à sua ultima morada terrena hoje de manhã, mas Deus tem sido generoso connosco meu querido. Deu-nos uma saúde de ferro, não tomamos medicamentos, não usamos bengala e não nos falta nem um dente. E isso tem-nos servido de desculpa para continuarmos a celebrar as nossas vidas todos os dias. Por isso fazemos este ritual quando estamos juntas. É uma maneira de nos lembrarmos como temos sido felizes e de matarmos as saudades de quem já partiu da Terra, mas continua sempre viva nos nossos corações.
O empregado foi percorrido por um misto de emoção e curiosidade. Ao mesmo tempo que via alguma tristeza e dor nos seus olhares, também percebeu que por detrás disso deviam estar histórias de vida absolutamente fabulosas e resolveu seguir o conselho da velha senhora. Olhou em volta, como que pedindo permissão a um chefe que não se encontrava por ali, puxou uma cadeira e preparou-se para as ouvir. E esta seria a história mais fabulosa que ouviria ao longo de toda a sua vida...

(continua)