domingo, 29 de janeiro de 2012

Abandono...

Sentado no banco do carro tentei perceber para onde nos dirigíamos. Era um dia de sol e lembrei-me que este era o caminho que fazíamos para ir à praia.
Disseram-me que era surpresa o meu destino e fui mantido na curiosidade e na expectativa durante o tempo todo da viagem.
Parámos à beira da estrada e fiquei extasiado com a possibilidade de sair para esticar as pernas. Abriram a porta do carro para eu sair e saltei contente do banco. Aproveitei para fazer xixi ali mesmo. Assim não faria de certeza no banco do carro e todos iam ficar contentes.
Começaram a brincar comigo. Mandaram-me uma bola para eu ir apanhar e eu fui. Correndo e saltando feliz atrás da bola nem me apercebi do que estava a acontecer.
Quando ouvi o barulho do motor do carro parei de perseguir a bola e olhei para trás. Vi que o carro estava a ir-se embora, primeiro devagar e depois desaparecia cada vez mais depressa.
Corri atrás do carro, tentando apanhá-lo. Porque se teriam esquecido de mim ali no meio do nada? Corri mais e mais e ainda mais depressa, mas o carro era dez vezes mais veloz. Depressa fiquei cansado e deitei-me ali mesmo na berma da estrada tentando recuperar o fôlego.
Agora já não conseguia ver o carro, mas havia muitos carros a passar por ali.
Fiquei ali triste e sozinho, chorando as mágoas durante algum tempo. Quando não sabia o que mais podia fazer, fui buscar a bola e trouxe-a de novo para a berma da estrada.
A noite chegou e com ela veio o frio e a fome. Nunca tinha passado uma noite ao relento nem me tinha faltado uma refeição. Já me tinham batido e acorrentado, mas nunca me tinham deixado abandonado. Era uma situação nova e eu não sabia o que fazer.
Tentei aconchegar-me perto de uma árvore para não sentir tanto frio e dormir um pouco, mas não consegui. Resolvi andar um pouco, mas os carros que por ali passavam iam-me atropelando por várias vezes. Cheguei perto de um sitio com muitas casas de onde vinha um forte cheiro a comida.
Avistei uma casa pequena rodeada de um jardim florido onde brincava uma criança. Ela olhou para mim e sorriu com uns olhos cor de amêndoa cheios de alegria.
- Mãe! - chamou a menina. - É um cãozinho! E parece estar cheio de fome, coitadinho. Podemos dar-lhe de comer?
- Claro! - respondeu a mãe. - Vamos arranjar qualquer coisa.
E foi assim que deixei de ter fome fome, sede ou frio. Porque uma menina de olhos grandes me viu e se apaixonou por mim à primeira vista, tal como eu me apaixonei pelo seu sorriso. Com o tempo fui entrando pelo quintal dentro, até ter conquistado o direito a um pedaço da casa e à totalidade dos seus corações. Não voltei a ser deixado na berma da estrada, não se voltaram a esquecer de mim e eu amo-os todos os dias da minha vida.

O dia da Reforma

Carolina era uma mulher com cinqueta anos. Diz quem a conhecia que tinha sido uma mulher lindíssima na flor da idade. Hoje era uma pessoa a quem as rugas não perdoaram e o peso da idade se fazia sentir na balança.
Trabalhava no balcão de uma agência de viagens quase tão antiga como ela, do tempo em que os barcos eram habituais e que as companhias aéreas se contavam pelos dedos das mãos.
Carolina tinha-se habituado a tudo, aos faxes, aos computadores, aos telemóveis, enfim, tudo o que era tecnologia não era desconhecido, mas não era algo com que se sentisse confortável. Ela era uma empregada à moda antiga, para quem o facto de falar ao telefone com alguém era mais valorizado do que enviar um e-mail.
Julieta, a sua colega de trabalho desde há vinte anos era o oposto. Embora tivessem apenas dez anos de diferença, era o bastante para nunca se terem compreendido. Julieta era uma mulher do mundo, uma mulher moderna, adepta das novas tecnologias e de uma vida boémia.
Davam-se relativamente bem, isto é, ignoravam-se para não discutirem por tudo e por nada. Só falavam por questões de trabalho e pouco mais, a não ser que o patrão estivesse presente. Nessas alturas eram capazes de manter conversas polidas, por causa das aparências. Ainda assim, quando conseguia arranjar uma desculpa para dar uma "escapadela" do trabalho, Carolina não se fazia rogada. Para Julieta essas "escapadelas" eram um alívio, já que a outra passava todo o dia a suspirar alto e a queixar-se.
Depois de trinta anos de dias cinzentos, Carolina reformou-se. O ultimo dia foi um alivio para o espírito e foi trabalhar com uma boa disposição nunca antes vista. O cabelo arranjado, as unhas pintadas, um vestido novo. Afinal ansiara por este dia na maior parte dos últimos vinte anos!
Na hora da despedida não lhe custou empacotar o que restava dos seus objectos pessoais e vir-se embora. Não houve abraços nem olhos marejados de lágrimas. Apenas os beijos da praxe e um olhar mais prolongado pela sala.
Julieta tinha ficado de pé a vê-la partir. Carolina tivera vontade de lhe dizer que agora finalmente podia ocupar a secretária e o lugar de chefia que há tanto tempo lutava por conseguir, mas não se quis chatear.
A primeira semana depois da reforma parecia um sonho. Finalmente tinha tempo para dormir, comia bem e a horas decentes, inscreveu-se no ginásio e mantinha o dia ocupado.
Na segunda semana, começou a sentir-se sozinha pois a filha passava a maior parte do dia na escola e da noite com os amigos. Como é que ela não tinha dado por aquela ausência antes? Que maçada! Logo agora que tinha tempo, a filha parecia que não lhe ligava nenhuma.
Na terceira semana pensou em passar mais tempo no ginásio, mas à noite o corpo pregava-lhe partidas, como quando se queria mexer e já não conseguia. A casa parecia-lhe cada vez mais silenciosa. Definitivamente tinha que ter uma conversa com a filha.
Nessa noite, quando a filha chegou a casa, disse-lhe das boas, mas a resposta que levou foi que ao final de dezassete anos é que se tinha lembrado que ela existia e tal, pelo que não ia mudar coisa nenhuma na sua vida para ficar enfiada em casa tipo uma velha.
Ao final de um mês, já com as velharias deitadas fora, as gavetas arrumadas, a casa a brilhar tanto que se podia lamber o chão, e as vidraças reluzentes, não sabia mais o que fazer. Lembrou-se de ir passear. Começou a percorrer as ruas, aparentemente sem destino, mas os pés e os velhos hábitos levaram-na ao percurso dos ultimos trinta anos. Quando deu por si estava no antigo local de trabalho. Meio dividida, decidiu entrar. Para sua surpresa, encontrou Julieta na mesma secretária e a sua antiga mesa de trabalho estava vazia. Olhou para aquele espaço e pareceu que estava a olhar para um mausoléu, onde tudo tinha sido preservado exactamente como ela tinha deixado. Não havia uma única coisa fora do lugar.
Quando entrou sentiu que o vazio que a assolara durante o ultimo mês se tinha ido embora.
"Bom dia!" - disse quando entrou.
Julieta olhou para ela e sorriu com a boca e com os olhos, pela primeira vez em vinte anos.
"Bom dia! Bem-vinda de volta!" - respondeu-lhe.
Carolina sentou-se na sua velha cadeira, ligou o computador e começou a trabalhar como se apenas tivesse chegado de umas longas férias. O seu velho patrão dirigiu-se a ela com uma pasta para que pudesse ter trabalho por onde começar.
"Sentimos a sua falta." - disse-lhe, virando as costas em seguida.
Pela primeira vez em muito tempo conseguiu sentir que era querida naquele lugar e percebeu que se calhar o problema não era de Julieta, mas dela própria. A hostilidade que emanava era a que recebia de volta e, no momento imediato em que começou a sentir saudades da sua antiga vida e aquilo que fazia, conseguiu perceber que só ali se sentia completa.
Nunca mais faltou ao trabalho.

Uma vida oculta

Maria era uma mulher de meia idade, como a maior parte das mulheres de meia idade são. A sua beleza já não era mais a mesma, o corpo estava ligeiramente deformado e a paciência arrumada por uma existência algo infeliz.
Ela era uma senhora. Oriunda de uma família de fazendeiros angolanos, donos de fazendas e matagais a perder de vista, viu-se de repente sem nada no período do pós-guerra e teve que refazer a sua vida noutro país. Adorava bordar, cozinhar e outros louvores femininos, coisas que fazia particularmente bem, mas a sua vida nunca fora abençoada pela maternidade.
Tímida e calada nas reuniões familiares, ninguém sabia ao certo quem ela era, porque o seu comportamento de senhora ainda tinha o pudor de outrora.
Diz quem os conhecia que era o oposto do marido. José também era oriundo de uma família de agricultores, mas a sua educação não chegava aos calcanhares da de sua mulher. Rude, teimoso e machista, era o protótipo de um Portugal ainda rural de há 30 anos atrás.
Maria morreu do mesmo modo como viveu: de uma forma calma. Um dia estava a dormir e não mais acordou.
O marido tratou dos trâmites do funeral. Maria fora uma boa esposa e ele queria dar-lhe tudo o que ela merecia. Apesar de não gostar de gastar muito dinheiro, José não tinha coragem de negar à sua esposa todas as regalias da sua última morada. Para além de ter medo que a sua alma o perseguisse, tinha também medo das más linguas da vizinhança.
Mas quando se tratou de arrumar os trapinhos da sua esposa, pois ele não era homem de guardar muitas recordações, muito menos de um defunto, chamou as suas sobrinhas, duas jovens mulhers que por certo teriam mais jeito do que ele para aquelas tarefas de mulher.
As duas lá foram, um pouco atrapalhadas por sentirem que nunca tinham conhecido bem aquela tia calada e tímida. Começaram pela roupa que estava pendurada no roupeiro e depois passaram às gavetas. No fundo de uma das gavetas estava uma chave, que as jovens não sabiam de onde seria.
Mais tarde, ao tentarem abrir uma das pequenas portas da parte de cima do armário, verificaram que esta estava fechada. Lembrando-se da chave encontrada, experimentaram-na na dita porta e esta abriu-se.
Ficaram atónitas ao verem vários caderninhos, todos eles escritos com a letra aprumadinha da sua tia. Eram os seus diários, algo que ela tinha mantido em segredo durante toda a sua vida.
O armário tinha ainda pilhas de cartas, algumas ainda contendo o perfume de uma paixão certamente adormecida pelos anos.
As duas jovens deixaram as pilhas de roupa em cima da cama e embrenharam-se numa viagem no tempo, que as levou até a uma Àfrica desconhecida e apaixonante. Numa só tarde, viveram amores e desamores, as coscuvilhices de uma sociedade coquette e uma tórrida paixão por um soldado português em tempo de guerra.
Quando o tio chegou a casa encontrou as duas jovens sentadas na cama lavadas em lágrimas.
"O que estão vocês a ler?" - perguntou, curioso.
"Só uns livros de receitas que a tia guardava. Ficámos emocionadas, só isso." - respondeu uma das sobrinhas.
"Coitadinhas" - disse José - "Gostavam muito da tia não era? Se vos custar muito esta tarefa, eu peço à mana Josefa."
"Não!" - responderam em coro.
"Tio, será que podemos ficar com estes livros da tia?" - perguntou uma das sobrinhas.
"Sim, claro, para que é que eu preciso de livros de receitas. Ainda está para chegar o dia em que vão ver-me no fogão!" - respondeu o tio virando as costas em seguida.
As sobrinhas acenaram com a cabeça, em sinal de concordância e em seguida voltaram para o mundo dos sonhos: dos bailes da sociedade, dos encontros no meio das plantações de café e das noites de paixão escaldante nos braços de um soldado que não se chamava José.

Suck it up!

Raquel trabalhava sozinha o dia todo. A manutenção do seu negócio exigia que tivesse um espaço calmo, onde lhe fosse prmitido pensar e dar asas à sua imaginação, mas também uma bancada de trabalho, onde podia fazer trabalho mais prático.
Era conhecida no país todo. Ou melhor, o seu nome era conhecido por todo o país, embora ninguém soubesse na realidade quem era a mulher por detrás do que saía daquele espaço.
A sua vida era preenchida pelo trabalho durante o dia e pela família durante a noite. Embora fosse perfeitamente feliz com o marido, após 15 anos de casamento a chama da paixão tinha-se apagado. Não sabia se havia culpas a atribuir, ou se o cansaço da rotina causava este esmorecimento com toda a gente.
Já tinha assisitdo a divórcios de alguns casais amigos, mas o seu casamento continuava sólido como uma rocha. O marido tratava-a como uma princesa e tinha dois filhos extraordinários, já a entrar na fase da pré-adolescência, pelo que achava que não tinha razões para se divorciar como as suas amigas.
Mas aos 35 anos Raquel sentia-se insatisfeita. Queria mais da vida. Não era dinheiro que lhe faltava, tinha todo o conforto material possível e imaginário, mas o vazio era emocional, era a sensação de sentir-se desejada, algo que o marido não lhe transmitia. Faziam amor, claro, mas era como se fosse uma rotina, um hábito adquirido, mais uma tarefa na sua lista diária de compromissos na agenda. Até os horários se tinham tornado previsíveis e Raquel estava a ficar farta.
Até que um dia a sua rotina mudou.
Um dos estafetas da empresas de transporte que usava habitualmente para fazer envios para os seus clientes entrou na sua sala de trabalho como era normal. Apesar de já trabalhar com ele há mais de um ano, nunca tinham trocado muito mais do que o cumprimento da praxe. Eventualmente dois dedos de conversa superficial, mas não havia a mínima confiança.
Raquel deu consigo a olhar para ele e a perceber que só nesse dia realmente o viu. Não era um homem de capa de revista, mas era tinha uma beleza interessante: não muito alto - apenas o suficiente para se poder aninhar nele e sentir-se protegida - olhos castanhos claros, um nariz fino e proeminente no tamanho certo para não ser demasiado grande, lábios finos mas carnudos. Desejou beijá-los e saborear o gosto da sua lingua. Desejou passar-lhe as mãos pelos cabelos escuros e inspirar o aroma másculo da sua pele.
Sentiu o ar a estalar debaixo dos dedos e acordou da visão que tinha acabado de ter. Reparou que ele a olhava com interesse enquanto franzia o sobrolho.
- Desculpe, perdi-me num pensamento. O que estava a dizer?- Perguntava se já tem a guia de transporte preenchida.- Claro, só falta você assinar. Está aqui em cima.
Ambos estenderam a mão ao mesmo tempo para o pedaço de papel em cima da bancada e as suas mãos tocaram-se levemente. Houve uma descarga eléctrica entre os dois e de repente, sem que nenhum deles soubesse como, já se beijavam sofregamente. O beijo foi tudo o que ela imaginara e muito mais. Começou sem que soubessem como nem porquê, mas depois passou a ser menos intenso, mas mais sensual, quase terno até.
Quando conseguiram separar-se, olharam um para o outro completamente horrorizados com o que tinham acabado de fazer.
- Desculpe D. Raquel! Eu nem sei como isto foi acontecer!
Ele estava visivelmente atrapalhado. O tom de voz era de quem estava até horrorizado.
- Deixe estar Sr. Ricardo, você não tem culpa de nada. Acho que nenhum de nós os dois percebeu muito bem como é que isto aconteceu no inicio. - respondeu, ainda meio atordoada e ofegante.
Os seus corpos ainda recuperavam do embate de energia, mas apesar de tudo Raquel conseguia ser um pouco mais racional do que ele.
- Diz bem, no início! Mas depois eu gostei e continuei, mesmo consciente de que o que estava a fazer era errado!- E julga que o sentimento não foi mútuo? Se eu não tivesse correspondido minimamente ou se não tivesse querido que você continuasse, pode ter a certeza que nunca se teria prolongado esta siuação.- Meu Deus, eu volto a pedir desculpa. - ele encostou-se à bancada de trabalho com a cabeça entre as mãos. - Eu nem sei por onde hei-de começar para compôr a asneira que acabei de fazer.- Você conhece a expressão inglesa "suck it up"?Ele assentiu afirmativamente com a cabeça.- Então já sabe o que fazer: aguente-se à bronca. Somos os dois adultos e nenhum de nós é inocente. Aconteceu. Aguente-se que eu também.Raquel reparou no pormenor da aliança no dedo anelar esquerdo, algo que nunca lhe tinha chamado à atenção anteriormente. Hoje parecia que aquele anel tinha luzes de néon embutidas.- Você também é casado?- Sou e juro que nunca me tinha acontecido nada disto até hoje! Nunca toquei noutra mulher!- Eu acredito que sim, porque também eu nunca tinha beijado outro homem desde que casei!No meio de toda a confusão que sentiam, ele conseguiu olhar para ela e sorrir, tentando aliviar a tensão.- Apesar de tudo, deviamos sentir-nos lisonjeados. Conseguimos fazer um ao outro em dois minutos o que algumas pessoas ao longo dos anos não fizeram.- É verdade. - ela sorriu de volta indo encostar-se ao lado dele na bancada.Era uma tentativa mútua de aligeirar o clima tenso e incómodo que se instalara.- Ainda assim não voltará a repetir-se, prometo! - disse-me com convicção, enquanto agarrava na guia e a assinava, preparando-se para ir embora.- Está bem. Va-se lá embora e cuide bem da minha encomenda. Até à próxima.Ele avançou até à porta mas ainda antes de sair voltou-se para trás tão repentinamente que quase esbarrou nela, que o seguia de perto. Sentiram-se novas faíscas no ar e acharam prudente que cada um desse um passo atrás.- Vais conseguir ficar bem contigo e com o teu marido? - perguntou ele, olhando-a intensamente e usando um tom de voz que deixou trespassar alguma intimidade. Também não lhe passou despercebido o facto de a ter começado a tratar por "tu".- Vou. Vou ficar bem, acho. O problema serei eu e não com o meu marido. Ele nada tem a ver com o que se passou. E tu? - ela levantou os olhos para ele e a intensidade do olhar dele forçou-a a manter o olhar.- Vou ficar com um peso na consciência, mas no fundo sinto o mesmo que tu.Passou-lhe a mão pela face em jeito de despedida e foi-se embora com a embalagem que tinha vindo buscar.Ele saiu e durante muito tempo aquele beijo não saiu da cabeça de Raquel. Pela primeira vez em anos sentira-se viva.
O tempo foi passando e ele continuou a vir fazer as recolhas das encomendas que Raquel expedia para os seus clientes. Depois de terem superado o constrangimento inicial, conseguiram começar a falar cada vez mais e mais, cimentando as bases de uma forte amizade.Quando ele estava com pressa, não se demorava e nenhum gostava quando isso acontecia. Geralmente, ele reservava sempre meia hora para estar com ela e ela guardava aquele tempo para conseguir fazer uma pequena pausa ao longo do dia. Sentavam-se lado a lado, numa pose descontraída, bebendo um chá ou um café. Contavam um ao outro algumas das suas peripécias. Com o tempo começaram a fazer alguns desabafos. As conversas foram-se tornando intimistas e chegou uma altura em que já nenhum dos dois precisava de falar para adivinhar o estado de espírito do outro.
Os seus casamentos continuavam de pé e aparentemente felizes, mas ambos sabiam que já não conseguiam viver sem se verem todos os dias. Mesmo quando não tinha encomendas para enviar, ele passava por lá simplesmente para cumprimentá-la.
Nunca mais se tinham beijado, mas jamais tinham conseguido deixar de se continuar a tocar. Depois do constrangimento inicial e enquanto cimentavam amizades, Raquel e Ricardo passaram do toque casual à carícia intencional. Às vezes passavam todo o tempo de mão dada. Um dia em que ele estava na mó de baixo e passou simplesmente para desabafar, acabaram os dois sentados no chão, num recanto da sala, com ele aninhado nos seus braços em busca de conforto.
Passaram cinco anos desde o beijo. Todos os anos ele vinha com uma rosa branca nessa data e todos os anos acrescentava uma rosa, como símbolo da contagem dos anos.
Este ano não era excepção. Mas havia alguma coisa na sua expressão que estava diferente.
- O que é que se passa? - perguntou ela.
- Feliz aniversário! - respondeu ele, avançando para ela, abraçando-a com força.
Raquel correspondeu ao abraço e sucumbiu à ternura que este continha.
- Ricardo, o que se passa? - repetiu.
- Não me vais desejar um feliz aniversário? - em vez de lhe dizer o que ela queria saber, ele respondeu com uma pergunta.
- Só depois de me dizeres o que se passa contigo.
Ela afastou-se para olhá-lo nos olhos e assustou-se com o que viu. Um fogo tão intenso, uma luz tão forte, que não teve dúvidas sobre o que se passava com ele.
- Eu digo-te o que se passa.
E puxou-a para si, agarrando-a pela nuca. O beijo que se seguiu foi forte e intenso e libertou cinco anos de carinho e desejo acumulado.
- Ricardo, tinhamos concordado que a nossa relação nunca iria passar para este nível. Não podemos!
- Lembras-te do que me disseste há cinco anos atrás? Suck it up! Os nossos conjuges andam enrolados um com o outro. Não é curioso?
Ela deu dois passos atrás sem poder acreditar no que ele lhe estava a dizer.
- O quê?!
- Aparentemente a minha fiel esposa desconfiou que eu andava com alguém e mandou fazer umas investigações. É claro que nunca lhe entregaram nada de concreto porque nunca aconteceu nada entre nós, mas foi o suficiente para ela ir ter com o teu marido e apresentar as suas conclusões. Ela confrontou-me com isso ontem à noite e eu finalmente admiti aquilo que sabia dentro de mim há cinco anos. Só que as coisas entre eles foram também evoluindo e tornaram-se bastante quentes.
- Não posso acreditar. O meu marido e a tua mulher?
- Mas podes mesmo acreditar Raquel. Eu apanhei-os em flagrante! Na minha casa! Hoje!
- O quê?
- Cheguei a casa mais cedo porque queria tomar banho e preparar-me para vir ter contigo. Como podes ver, não o fiz, pois ainda estou com a minha farda de trabalho e a cheirar a cavalo, nada do que tinha planeado para ti.
Ela teve que sentar-se no chão pois corria o risco de cair a qualquer momento.
- Sabes o que é mais curioso? É que não me importei mesmo nada! - continuou ele.
Raquel tentou analisar o que sentia. Na realidade, também ela não sentia raiva nem tristeza dentro dela. Nem tão pouco uma pontada de ciume, o que era estranho, pois de cada vez que pensava em Ricardo e como seria quando ele estava com a mulher dele, quase se roía toda.
Olhou para ele e riu às gargalhadas.
- E o que fizeste quando os apanhaste?
Encolheu os ombros e sentou-se no chão ao meu lado, entrelaçando a sua mão na minha.
- Nada.
Raquel olhou para ele com espanto.
- Como nada?
- Mentira. Passei na florista para te comprar as rosas. E depois vim para cá. Foi o que fiz.
- E eles?
- Eles não importam Raquel, não me ralo mesmo nada! Eles não fizeram mais do que apaixonar-se, o que no fundo foi o que nos aconteceu. Mas temos a nossa consciência tranquila porque nunca mais nos tocámos e ali não houve essa consideração. Magoa-me apenas o facto de termos deixado arrastar esta situação durante tanto tempo. Os quatro.
- Oh céus! E agora? O que vamos fazer?
- Primeiro vamos divorciar-nos. Acho que não faz sentido continuarmos a viver mais tempo assim.
- Concordo.
- E depois vamos casar-nos. Nós os dois. Tu e eu.
- Vamos?
- Vamos.
Raquel olhou para ele e sorriu. Ele preenchia-a de todas as formas que o marido nunca conseguira, apesar de a tratar como uma princesa. A comunicação, a linguagem corporal, os gostos, o facto de conseguirem expressar os sentimentos em voz alta. Não tinha a mais pequena dúvida de que daria certo.
- Só tenho uma condição a impôr.
Ele olhou para ela e sorriu. Antes mesmo de ela lhe dizer o que era, já ele lhe respondia.
- Nem penses que vou esperar até ao casamento!
E Raquel viu-se tomada de assalto ali mesmo, no chão da sua sala de trabalho, o seu refúgio durante cinco anos e sentiu uma felicidade enorme.
A partir de agora o vazio estava preenchido por completo.

Aos 35 anos Corina era uma mulher solitária. Morava sozinha num pequeno apartamento alugado no centro da sua cidade natal. Tinha muitos amigos, mas não tinha uma namorado.
Dizia quem a conhecia que nunca a tinha visto com um homem e comentavam as más linguas que iria morrer virgem e sem ter conhecido homem, mas a verdade é que as coisas não eram bem assim.
De facto, Corina passara muitos anos sem uma companhia masculina. Tinha os seus romances fugazes, mas nada de compromissos sérios. Isso não era para ela.
Mas aos 30 anos tudou mudara.
Uma noite, ao regressar a casa depois de mais uma das suas saídas com amigos, eis que sentiu uma presença junto a si.
Olhou para trás, sentindo um pouco de receio. Afinal os noticiários estavam todos cheios de histórias de assaltos, violações e assassinatos.
Não viu ninguém, mas ainda assim acelerou o passo até entrar no prédio.
No dia seguinte comentou o sucedido com as amigas e todas sem excepção lhe disseram para ter muito cuidado.
Nesse fim de tarde, quando regressava do trabalho, Corina estava completamente absorta nos seus pensamentos. Ao chegar ao quarteirão onde morava, preparava-se para atravessar a estrada nas passadeiras quando, subitamente, um carro perdeu o controlo e subiu o passeio indo na sua direcção.
Isto aconteceu tão depressa, que não teve tempo para nenhuma reacção, mas eis que subitamente se sentiu puxada por umas mãos fortes que a tiraram da frente do carro.
Corina caiu para trás, embatendo em cima de alguém. Era o homem com mãos fortes, que também se desequilibrara ao tentar retirá-la da zona de impacto.
Ficaram os dois um sobre o outro, olhos nos olhos, sentindo a conexão que se estabelecera entre ambos como se um laço invisível os tornasse um só para sempre. O bater dos seus corações tornou-se um só.
O condutor do automóvel saiu desesperado, procurando ver se ninguém se magoara. Tinha perdido os travões e não conseguira dominar a viatura.
Corina levantou-se e estendeu a mão ao estranho que a salvara. Ambos estavam no seu próprio mundo e parecia que o tempo tinha para do à sua volta. Os sons da realidade chegavam muito ténues aos seus ouvidos. Só tinham olhos um para o outro. Mão um para o outro. Todos os seus sentidos despertos e alerta um no outro. Nada mais tinha importância.
Ainda alheados da realidade foram-se embora. Corina conduziu o estranho que a salvara até à sua casa. Mal entrarm no apartamento, não foram precisas palavras. Começaram a despir-se e fizeram amor como quem se conhecia há muito, muito tempo.
Corina sabia que era uma loucura, mas se o era então não queria voltar a ficar sã.
Adormeceram agarrados e sem uma palavra. Na manhã seguinte, o homem tinha desaparcido. Só o seu corpo extenuado testemunhara a noite anterior.
Passou o dia todo absorvida pela dureza da realidade e apenas comentou com as amigas o facto de quase ter sido atropelada, omitindo o resto dos acontecimentos.
Nessa tarde, ao chegar a casa, o estranho estava à porta, à sua espera. Uma vez mais não foram precisas palavras, bastou um olhar e a conexão estabeleceu-se de imediato.
Primeiro mataram a sede da paixão que os consumia até à alma. Só depois tiveram coragem para conversar.
Ele primeiro. Com uma voz grave e rouca contou-lhe que não podia vir ter com ela durante o dia. Nunca. Só a partir do momento em que o sol se punha no horizonte é que poderia aparecer.
Ela perguntou-lhe, rindo, se ele era vampiro.
Não, não era, mas enquanto o sol brilhasse estava aprisionado num corpo que não era o seu.
Corina aceitou o que ele lhe contou sem reservas e os seus encontros continuaram furtivamente quando o sol se punha, todos os dias sem excepção.
Ninguém desconfiou de nada e todos continuavam a comentar a vida infeliz que tinha aquela jovem mulher, que vivia na companhia do seu fiel gato, do qual nunca se separava em nenhuma situação. Diziam as más linguas que a ouviam a falar com ele durante o dia e a noite, e que a jovem mulher que não tinha namorado e ia morrer virgem, estava já a enlouquecer.