Raquel trabalhava sozinha o
dia todo. A manutenção do seu negócio exigia que tivesse um espaço
calmo, onde lhe fosse prmitido pensar e dar asas à sua imaginação, mas
também uma bancada de trabalho, onde podia fazer trabalho mais prático.
Era
conhecida no país todo. Ou melhor, o seu nome era conhecido por todo o
país, embora ninguém soubesse na realidade quem era a mulher por detrás
do que saía daquele espaço.
A
sua vida era preenchida pelo trabalho durante o dia e pela família
durante a noite. Embora fosse perfeitamente feliz com o marido, após 15
anos de casamento a chama da paixão tinha-se apagado. Não sabia se havia
culpas a atribuir, ou se o cansaço da rotina causava este esmorecimento
com toda a gente.
Já
tinha assisitdo a divórcios de alguns casais amigos, mas o seu casamento
continuava sólido como uma rocha. O marido tratava-a como uma princesa e
tinha dois filhos extraordinários, já a entrar na fase da
pré-adolescência, pelo que achava que não tinha razões para se divorciar
como as suas amigas.
Mas
aos 35 anos Raquel sentia-se insatisfeita. Queria mais da vida. Não era
dinheiro que lhe faltava, tinha todo o conforto material possível e
imaginário, mas o vazio era emocional, era a sensação de sentir-se
desejada, algo que o marido não lhe transmitia. Faziam amor, claro, mas
era como se fosse uma rotina, um hábito adquirido, mais uma tarefa na
sua lista diária de compromissos na agenda. Até os horários se tinham
tornado previsíveis e Raquel estava a ficar farta.
Até que um dia a sua rotina mudou.
Um
dos estafetas da empresas de transporte que usava habitualmente para
fazer envios para os seus clientes entrou na sua sala de trabalho como
era normal. Apesar de já trabalhar com ele há mais de um ano, nunca
tinham trocado muito mais do que o cumprimento da praxe. Eventualmente
dois dedos de conversa superficial, mas não havia a mínima confiança.
Raquel deu consigo a olhar para ele e a perceber que só nesse dia realmente o viu.
Não era um homem de capa de revista, mas era tinha uma beleza
interessante: não muito alto - apenas o suficiente para se poder aninhar
nele e sentir-se protegida - olhos castanhos claros, um nariz fino e
proeminente no tamanho certo para não ser demasiado grande, lábios finos
mas carnudos. Desejou beijá-los e saborear o gosto da sua lingua.
Desejou passar-lhe as mãos pelos cabelos escuros e inspirar o aroma
másculo da sua pele.
Sentiu
o ar a estalar debaixo dos dedos e acordou da visão que tinha acabado
de ter. Reparou que ele a olhava com interesse enquanto franzia o
sobrolho.
- Desculpe, perdi-me num pensamento. O que estava a dizer?- Perguntava se já tem a guia de transporte preenchida.- Claro, só falta você assinar. Está aqui em cima.
Ambos
estenderam a mão ao mesmo tempo para o pedaço de papel em cima da
bancada e as suas mãos tocaram-se levemente. Houve uma descarga
eléctrica entre os dois e de repente, sem que nenhum deles soubesse
como, já se beijavam sofregamente. O beijo foi tudo o que ela imaginara e
muito mais. Começou sem que soubessem como nem porquê, mas depois
passou a ser menos intenso, mas mais sensual, quase terno até.
Quando conseguiram separar-se, olharam um para o outro completamente horrorizados com o que tinham acabado de fazer.
- Desculpe D. Raquel! Eu nem sei como isto foi acontecer!
Ele estava visivelmente atrapalhado. O tom de voz era de quem estava até horrorizado.
-
Deixe estar Sr. Ricardo, você não tem culpa de nada. Acho que nenhum de
nós os dois percebeu muito bem como é que isto aconteceu no inicio. -
respondeu, ainda meio atordoada e ofegante.
Os
seus corpos ainda recuperavam do embate de energia, mas apesar de tudo
Raquel conseguia ser um pouco mais racional do que ele.
- Diz bem, no início! Mas depois eu gostei e continuei, mesmo consciente de que o que estava a fazer era errado!-
E julga que o sentimento não foi mútuo? Se eu não tivesse correspondido
minimamente ou se não tivesse querido que você continuasse, pode ter a
certeza que nunca se teria prolongado esta siuação.-
Meu Deus, eu volto a pedir desculpa. - ele encostou-se à bancada de
trabalho com a cabeça entre as mãos. - Eu nem sei por onde hei-de
começar para compôr a asneira que acabei de fazer.- Você conhece a expressão inglesa "suck it up"?Ele assentiu afirmativamente com a cabeça.-
Então já sabe o que fazer: aguente-se à bronca. Somos os dois adultos e
nenhum de nós é inocente. Aconteceu. Aguente-se que eu também.Raquel
reparou no pormenor da aliança no dedo anelar esquerdo, algo que nunca
lhe tinha chamado à atenção anteriormente. Hoje parecia que aquele anel
tinha luzes de néon embutidas.- Você também é casado?- Sou e juro que nunca me tinha acontecido nada disto até hoje! Nunca toquei noutra mulher!- Eu acredito que sim, porque também eu nunca tinha beijado outro homem desde que casei!No meio de toda a confusão que sentiam, ele conseguiu olhar para ela e sorrir, tentando aliviar a tensão.-
Apesar de tudo, deviamos sentir-nos lisonjeados. Conseguimos fazer um
ao outro em dois minutos o que algumas pessoas ao longo dos anos não
fizeram.- É verdade. - ela sorriu de volta indo encostar-se ao lado dele na bancada.Era uma tentativa mútua de aligeirar o clima tenso e incómodo que se instalara.-
Ainda assim não voltará a repetir-se, prometo! - disse-me com
convicção, enquanto agarrava na guia e a assinava, preparando-se para ir
embora.- Está bem. Va-se lá embora e cuide bem da minha encomenda. Até à próxima.Ele
avançou até à porta mas ainda antes de sair voltou-se para trás tão
repentinamente que quase esbarrou nela, que o seguia de perto.
Sentiram-se novas faíscas no ar e acharam prudente que cada um desse um
passo atrás.- Vais conseguir ficar bem
contigo e com o teu marido? - perguntou ele, olhando-a intensamente e
usando um tom de voz que deixou trespassar alguma intimidade. Também não
lhe passou despercebido o facto de a ter começado a tratar por "tu".-
Vou. Vou ficar bem, acho. O problema serei eu e não com o meu marido.
Ele nada tem a ver com o que se passou. E tu? - ela levantou os olhos
para ele e a intensidade do olhar dele forçou-a a manter o olhar.- Vou ficar com um peso na consciência, mas no fundo sinto o mesmo que tu.Passou-lhe a mão pela face em jeito de despedida e foi-se embora com a embalagem que tinha vindo buscar.Ele saiu e durante muito tempo aquele beijo não saiu da cabeça de Raquel. Pela primeira vez em anos sentira-se viva.
O
tempo foi passando e ele continuou a vir fazer as recolhas das
encomendas que Raquel expedia para os seus clientes. Depois de terem
superado o constrangimento inicial, conseguiram começar a falar cada vez
mais e mais, cimentando as bases de uma forte amizade.Quando
ele estava com pressa, não se demorava e nenhum gostava quando isso
acontecia. Geralmente, ele reservava sempre meia hora para estar com ela
e ela guardava aquele tempo para conseguir fazer uma pequena pausa ao
longo do dia. Sentavam-se lado a lado, numa pose descontraída, bebendo
um chá ou um café. Contavam um ao outro algumas das suas peripécias. Com
o tempo começaram a fazer alguns desabafos. As conversas foram-se
tornando intimistas e chegou uma altura em que já nenhum dos dois
precisava de falar para adivinhar o estado de espírito do outro.
Os
seus casamentos continuavam de pé e aparentemente felizes, mas ambos
sabiam que já não conseguiam viver sem se verem todos os dias. Mesmo
quando não tinha encomendas para enviar, ele passava por lá simplesmente
para cumprimentá-la.
Nunca
mais se tinham beijado, mas jamais tinham conseguido deixar de se
continuar a tocar. Depois do constrangimento inicial e enquanto
cimentavam amizades, Raquel e Ricardo passaram do toque casual à carícia
intencional. Às vezes passavam todo o tempo de mão dada. Um dia em que
ele estava na mó de baixo e passou simplesmente para desabafar, acabaram
os dois sentados no chão, num recanto da sala, com ele aninhado nos
seus braços em busca de conforto.
Passaram
cinco anos desde o beijo. Todos os anos ele vinha com uma rosa branca
nessa data e todos os anos acrescentava uma rosa, como símbolo da
contagem dos anos.
Este ano não era excepção. Mas havia alguma coisa na sua expressão que estava diferente.
- O que é que se passa? - perguntou ela.
- Feliz aniversário! - respondeu ele, avançando para ela, abraçando-a com força.
Raquel correspondeu ao abraço e sucumbiu à ternura que este continha.
- Ricardo, o que se passa? - repetiu.
- Não me vais desejar um feliz aniversário? - em vez de lhe dizer o que ela queria saber, ele respondeu com uma pergunta.
- Só depois de me dizeres o que se passa contigo.
Ela
afastou-se para olhá-lo nos olhos e assustou-se com o que viu. Um fogo
tão intenso, uma luz tão forte, que não teve dúvidas sobre o que se
passava com ele.
- Eu digo-te o que se passa.
E
puxou-a para si, agarrando-a pela nuca. O beijo que se seguiu foi forte
e intenso e libertou cinco anos de carinho e desejo acumulado.
- Ricardo, tinhamos concordado que a nossa relação nunca iria passar para este nível. Não podemos!
-
Lembras-te do que me disseste há cinco anos atrás? Suck it up! Os
nossos conjuges andam enrolados um com o outro. Não é curioso?
Ela deu dois passos atrás sem poder acreditar no que ele lhe estava a dizer.
- O quê?!
-
Aparentemente a minha fiel esposa desconfiou que eu andava com alguém e
mandou fazer umas investigações. É claro que nunca lhe entregaram nada
de concreto porque nunca aconteceu nada entre nós, mas foi o suficiente
para ela ir ter com o teu marido e apresentar as suas conclusões. Ela
confrontou-me com isso ontem à noite e eu finalmente admiti aquilo que
sabia dentro de mim há cinco anos. Só que as coisas entre eles foram
também evoluindo e tornaram-se bastante quentes.
- Não posso acreditar. O meu marido e a tua mulher?
- Mas podes mesmo acreditar Raquel. Eu apanhei-os em flagrante! Na minha casa! Hoje!
- O quê?
-
Cheguei a casa mais cedo porque queria tomar banho e preparar-me para
vir ter contigo. Como podes ver, não o fiz, pois ainda estou com a minha
farda de trabalho e a cheirar a cavalo, nada do que tinha planeado para
ti.
Ela teve que sentar-se no chão pois corria o risco de cair a qualquer momento.
- Sabes o que é mais curioso? É que não me importei mesmo nada! - continuou ele.
Raquel
tentou analisar o que sentia. Na realidade, também ela não sentia raiva
nem tristeza dentro dela. Nem tão pouco uma pontada de ciume, o que era
estranho, pois de cada vez que pensava em Ricardo e como seria quando
ele estava com a mulher dele, quase se roía toda.
Olhou para ele e riu às gargalhadas.
- E o que fizeste quando os apanhaste?
Encolheu os ombros e sentou-se no chão ao meu lado, entrelaçando a sua mão na minha.
- Nada.
Raquel olhou para ele com espanto.
- Como nada?
- Mentira. Passei na florista para te comprar as rosas. E depois vim para cá. Foi o que fiz.
- E eles?
-
Eles não importam Raquel, não me ralo mesmo nada! Eles não fizeram mais
do que apaixonar-se, o que no fundo foi o que nos aconteceu. Mas temos a
nossa consciência tranquila porque nunca mais nos tocámos e ali não
houve essa consideração. Magoa-me apenas o facto de termos deixado
arrastar esta situação durante tanto tempo. Os quatro.
- Oh céus! E agora? O que vamos fazer?
- Primeiro vamos divorciar-nos. Acho que não faz sentido continuarmos a viver mais tempo assim.
- Concordo.
- E depois vamos casar-nos. Nós os dois. Tu e eu.
- Vamos?
- Vamos.
Raquel
olhou para ele e sorriu. Ele preenchia-a de todas as formas que o
marido nunca conseguira, apesar de a tratar como uma princesa. A
comunicação, a linguagem corporal, os gostos, o facto de conseguirem
expressar os sentimentos em voz alta. Não tinha a mais pequena dúvida de
que daria certo.
- Só tenho uma condição a impôr.
Ele olhou para ela e sorriu. Antes mesmo de ela lhe dizer o que era, já ele lhe respondia.
- Nem penses que vou esperar até ao casamento!
E
Raquel viu-se tomada de assalto ali mesmo, no chão da sua sala de
trabalho, o seu refúgio durante cinco anos e sentiu uma felicidade
enorme.
A partir de agora o vazio estava preenchido por completo.