domingo, 29 de janeiro de 2012

O dia da Reforma

Carolina era uma mulher com cinqueta anos. Diz quem a conhecia que tinha sido uma mulher lindíssima na flor da idade. Hoje era uma pessoa a quem as rugas não perdoaram e o peso da idade se fazia sentir na balança.
Trabalhava no balcão de uma agência de viagens quase tão antiga como ela, do tempo em que os barcos eram habituais e que as companhias aéreas se contavam pelos dedos das mãos.
Carolina tinha-se habituado a tudo, aos faxes, aos computadores, aos telemóveis, enfim, tudo o que era tecnologia não era desconhecido, mas não era algo com que se sentisse confortável. Ela era uma empregada à moda antiga, para quem o facto de falar ao telefone com alguém era mais valorizado do que enviar um e-mail.
Julieta, a sua colega de trabalho desde há vinte anos era o oposto. Embora tivessem apenas dez anos de diferença, era o bastante para nunca se terem compreendido. Julieta era uma mulher do mundo, uma mulher moderna, adepta das novas tecnologias e de uma vida boémia.
Davam-se relativamente bem, isto é, ignoravam-se para não discutirem por tudo e por nada. Só falavam por questões de trabalho e pouco mais, a não ser que o patrão estivesse presente. Nessas alturas eram capazes de manter conversas polidas, por causa das aparências. Ainda assim, quando conseguia arranjar uma desculpa para dar uma "escapadela" do trabalho, Carolina não se fazia rogada. Para Julieta essas "escapadelas" eram um alívio, já que a outra passava todo o dia a suspirar alto e a queixar-se.
Depois de trinta anos de dias cinzentos, Carolina reformou-se. O ultimo dia foi um alivio para o espírito e foi trabalhar com uma boa disposição nunca antes vista. O cabelo arranjado, as unhas pintadas, um vestido novo. Afinal ansiara por este dia na maior parte dos últimos vinte anos!
Na hora da despedida não lhe custou empacotar o que restava dos seus objectos pessoais e vir-se embora. Não houve abraços nem olhos marejados de lágrimas. Apenas os beijos da praxe e um olhar mais prolongado pela sala.
Julieta tinha ficado de pé a vê-la partir. Carolina tivera vontade de lhe dizer que agora finalmente podia ocupar a secretária e o lugar de chefia que há tanto tempo lutava por conseguir, mas não se quis chatear.
A primeira semana depois da reforma parecia um sonho. Finalmente tinha tempo para dormir, comia bem e a horas decentes, inscreveu-se no ginásio e mantinha o dia ocupado.
Na segunda semana, começou a sentir-se sozinha pois a filha passava a maior parte do dia na escola e da noite com os amigos. Como é que ela não tinha dado por aquela ausência antes? Que maçada! Logo agora que tinha tempo, a filha parecia que não lhe ligava nenhuma.
Na terceira semana pensou em passar mais tempo no ginásio, mas à noite o corpo pregava-lhe partidas, como quando se queria mexer e já não conseguia. A casa parecia-lhe cada vez mais silenciosa. Definitivamente tinha que ter uma conversa com a filha.
Nessa noite, quando a filha chegou a casa, disse-lhe das boas, mas a resposta que levou foi que ao final de dezassete anos é que se tinha lembrado que ela existia e tal, pelo que não ia mudar coisa nenhuma na sua vida para ficar enfiada em casa tipo uma velha.
Ao final de um mês, já com as velharias deitadas fora, as gavetas arrumadas, a casa a brilhar tanto que se podia lamber o chão, e as vidraças reluzentes, não sabia mais o que fazer. Lembrou-se de ir passear. Começou a percorrer as ruas, aparentemente sem destino, mas os pés e os velhos hábitos levaram-na ao percurso dos ultimos trinta anos. Quando deu por si estava no antigo local de trabalho. Meio dividida, decidiu entrar. Para sua surpresa, encontrou Julieta na mesma secretária e a sua antiga mesa de trabalho estava vazia. Olhou para aquele espaço e pareceu que estava a olhar para um mausoléu, onde tudo tinha sido preservado exactamente como ela tinha deixado. Não havia uma única coisa fora do lugar.
Quando entrou sentiu que o vazio que a assolara durante o ultimo mês se tinha ido embora.
"Bom dia!" - disse quando entrou.
Julieta olhou para ela e sorriu com a boca e com os olhos, pela primeira vez em vinte anos.
"Bom dia! Bem-vinda de volta!" - respondeu-lhe.
Carolina sentou-se na sua velha cadeira, ligou o computador e começou a trabalhar como se apenas tivesse chegado de umas longas férias. O seu velho patrão dirigiu-se a ela com uma pasta para que pudesse ter trabalho por onde começar.
"Sentimos a sua falta." - disse-lhe, virando as costas em seguida.
Pela primeira vez em muito tempo conseguiu sentir que era querida naquele lugar e percebeu que se calhar o problema não era de Julieta, mas dela própria. A hostilidade que emanava era a que recebia de volta e, no momento imediato em que começou a sentir saudades da sua antiga vida e aquilo que fazia, conseguiu perceber que só ali se sentia completa.
Nunca mais faltou ao trabalho.

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