Carolina era uma mulher com cinqueta anos. Diz
quem a conhecia que tinha sido uma mulher lindíssima na flor da idade.
Hoje era uma pessoa a quem as rugas não perdoaram e o peso da idade se
fazia sentir na balança.
Trabalhava
no balcão de uma agência de viagens quase tão antiga como ela, do tempo
em que os barcos eram habituais e que as companhias aéreas se contavam
pelos dedos das mãos.
Carolina
tinha-se habituado a tudo, aos faxes, aos computadores, aos telemóveis,
enfim, tudo o que era tecnologia não era desconhecido, mas não era algo
com que se sentisse confortável. Ela era uma empregada à moda antiga,
para quem o facto de falar ao telefone com alguém era mais valorizado do
que enviar um e-mail.
Julieta,
a sua colega de trabalho desde há vinte anos era o oposto. Embora
tivessem apenas dez anos de diferença, era o bastante para nunca se
terem compreendido. Julieta era uma mulher do mundo, uma mulher moderna,
adepta das novas tecnologias e de uma vida boémia.
Davam-se
relativamente bem, isto é, ignoravam-se para não discutirem por tudo e
por nada. Só falavam por questões de trabalho e pouco mais, a não ser
que o patrão estivesse presente. Nessas alturas eram capazes de manter
conversas polidas, por causa das aparências. Ainda assim, quando
conseguia arranjar uma desculpa para dar uma "escapadela" do trabalho,
Carolina não se fazia rogada. Para Julieta essas "escapadelas" eram um
alívio, já que a outra passava todo o dia a suspirar alto e a
queixar-se.
Depois de trinta anos de dias
cinzentos, Carolina reformou-se. O ultimo dia foi um alivio para o
espírito e foi trabalhar com uma boa disposição nunca antes vista. O
cabelo arranjado, as unhas pintadas, um vestido novo. Afinal ansiara por
este dia na maior parte dos últimos vinte anos!
Na
hora da despedida não lhe custou empacotar o que restava dos seus
objectos pessoais e vir-se embora. Não houve abraços nem olhos marejados
de lágrimas. Apenas os beijos da praxe e um olhar mais prolongado pela
sala.
Julieta
tinha ficado de pé a vê-la partir. Carolina tivera vontade de lhe dizer
que agora finalmente podia ocupar a secretária e o lugar de chefia que
há tanto tempo lutava por conseguir, mas não se quis chatear.
A
primeira semana depois da reforma parecia um sonho. Finalmente tinha
tempo para dormir, comia bem e a horas decentes, inscreveu-se no ginásio
e mantinha o dia ocupado.
Na
segunda semana, começou a sentir-se sozinha pois a filha passava a
maior parte do dia na escola e da noite com os amigos. Como é que ela
não tinha dado por aquela ausência antes? Que maçada! Logo agora que
tinha tempo, a filha parecia que não lhe ligava nenhuma.
Na
terceira semana pensou em passar mais tempo no ginásio, mas à noite o
corpo pregava-lhe partidas, como quando se queria mexer e já não
conseguia. A casa parecia-lhe cada vez mais silenciosa. Definitivamente
tinha que ter uma conversa com a filha.
Nessa
noite, quando a filha chegou a casa, disse-lhe das boas, mas a resposta
que levou foi que ao final de dezassete anos é que se tinha lembrado
que ela existia e tal, pelo que não ia mudar coisa nenhuma na sua vida
para ficar enfiada em casa tipo uma velha.
Ao
final de um mês, já com as velharias deitadas fora, as gavetas
arrumadas, a casa a brilhar tanto que se podia lamber o chão, e as
vidraças reluzentes, não sabia mais o que fazer. Lembrou-se de ir
passear. Começou a percorrer as ruas, aparentemente sem destino, mas os
pés e os velhos hábitos levaram-na ao percurso dos ultimos trinta anos.
Quando deu por si estava no antigo local de trabalho. Meio dividida,
decidiu entrar. Para sua surpresa, encontrou Julieta na mesma secretária
e a sua antiga mesa de trabalho estava vazia. Olhou para aquele espaço e
pareceu que estava a olhar para um mausoléu, onde tudo tinha sido
preservado exactamente como ela tinha deixado. Não havia uma única coisa
fora do lugar.
Quando entrou sentiu que o vazio que a assolara durante o ultimo mês se tinha ido embora.
"Bom dia!" - disse quando entrou.
Julieta olhou para ela e sorriu com a boca e com os olhos, pela primeira vez em vinte anos.
"Bom dia! Bem-vinda de volta!" - respondeu-lhe.
Carolina
sentou-se na sua velha cadeira, ligou o computador e começou a
trabalhar como se apenas tivesse chegado de umas longas férias. O seu
velho patrão dirigiu-se a ela com uma pasta para que pudesse ter
trabalho por onde começar.
"Sentimos a sua falta." - disse-lhe, virando as costas em seguida.
Pela
primeira vez em muito tempo conseguiu sentir que era querida naquele
lugar e percebeu que se calhar o problema não era de Julieta, mas dela
própria. A hostilidade que emanava era a que recebia de volta e, no
momento imediato em que começou a sentir saudades da sua antiga vida e
aquilo que fazia, conseguiu perceber que só ali se sentia completa.
Nunca mais faltou ao trabalho.
Sem comentários:
Enviar um comentário