Retomei a consciência lentamente. Sentia-me completamente
dorida por ter estado caída durante o que me pareceram horas intermináveis no
chão duro do quarto de hotel, embora a rigidez do corpo fosse o menos grave dos
meus problemas.
O cheiro
agridoce da matança invadiu-me as narinas e o som das gotas de sangue que ainda
escorriam do corpo da vítima batiam lentamente no chão, deixando perceber que
não tinha passado tanto tempo assim.
A luminosidade
que entrava pela janela fez-me ser percorrida por um sentido de urgência. Percebi
que tinha que sair dali rapidamente ou estaria perdida, pois não tardaria a
amanhecer e com as primeiras horas do dia voltaria o movimento característico dos
corredores de um hotel. Não podia ser vista e não me apetecia voltar a matar.
- Porra, isto
tem que acabar! – exclamei, enraivecida.
Geralmente
preferia as mortes limpas e sem grandes alaridos, mas a decisão não estava nas
minhas mãos.
Apesar de ter
resmungado em voz baixa, ainda assim sabia que eles iriam ouvir-me e de novo
viriam no meu encalço. Não me enganei.
Mal tinha
conseguido pôr-me de pé para me vestir quando os senti a invadirem o quarto.
Duas figuras altas e imponentes, que impunham respeito a qualquer um. Eram
completamente diferentes, mas ainda assim eu sabia que essa diferença era mais
superficial do que aparentava.
- Ao menos
podiam ter-me deixado vestir!
- Sempre a
reclamar. Não sei se já percebeste, mas o corpo humano para nós não vale nada.
– respondeu Lúcifer apontando para o corpo da vítima a seus pés, enquanto me
dava um dos seus olhares gélidos. - Podias ao menos mostrar-te agradecida pela
segunda oportunidade!
Os seus olhos conseguiam matar qualquer pessoa
sem que para isso ele tivesse que mover um dedo, mas não surtiam qualquer
efeito em mim. Pelo menos não enquanto estivesse no que eu gostava de definir
como «período de estágio», o que era uma vantagem, já que a minha tendência
para a insubordinação era lendária entre os meus iguais.
Pedro pôs-lhe
uma mão sobre o ombro num gesto apaziguador. Era o único que lhe conseguia
tocar sem se transformar num monte de cinzas.
- Calma Lúcifer,
sabes que os caminhos da justiça divina levam o seu tempo a serem
compreendidos. Dá-lhe tempo e ela habitua-se!
Revirei os
olhos com impaciência, sabendo de antemão o discurso que vinha por aí.
Virei-lhes as costas e fui para a casa de banho para me lavar e vestir, sem me
importar minimamente com a porta, já que privacidade era uma palavra que não
existia para aqueles dois.
- Dois anos,
Pedro! É tempo que chegue para compreender os meios da justiça divina, não
achas? Por mim basta!
- O que
sugeres então?
- Um último
trabalho. E depois terá que se decidir.
A minha
audição apurada afinou-se ainda mais e todos os cabelos do meu corpo se
eriçaram com a mudança no discurso de sempre. Aquilo era uma novidade.
Geralmente seguia-se uma palestra sobre como me tinham resgatado da morte depois
de alguém me ter assassinado numa noite fria, imediatamente após lhes ter
prestado uns quantos favores sexuais. Sobre como a minha alma estava suja mas
podia ser redimida se aceitasse o acordo que me ofereciam. Sobre a importância
do trabalho que faria ao serviço da salvação das almas.
Sim, pois,
como se matar pessoas para me redimir fosse assim tão diferente do que tinham
feito comigo! Tretas.
Saí da casa de
banho e encarei-os, de mão na anca e uma expressão de sarcasmo no rosto.
- Adoro ouvir
boas ideias logo de manhã, mas primeiro tenho que sair daqui. Não tenho a
capacidade de teletransportar-me de um sítio para o outro, já que alguém – acenei com o queixo na direcção
de Pedro – não incluiu esse entre os meus poderes…
Ele não perdeu
o seu ar complacente.
- Quando
completares o período experimental virão as outras capacidades. Até lá, ficarás
praticamente como a simples humana que ainda és. Devias estar grata com as
pequenas melhorias que te fizemos, porque te demos as ferramentas necessárias
para desempenhares o teu trabalho. Os humanos não as têm e ainda assim não são
menos competentes quando se matam uns aos outros! – respondeu com aquele ar
sereno que me enervava.
Não resisti a
dar uma gargalhada, mas não perdi o ar sarcástico.
- Eu já era
prostituta antes de morrer, e das boas, por sinal! A única coisa em que me
tornaram competente foi na arte de matar. – fiz uma ligeira pausa, tentando
acalmar a raiva que estava em ebulição. Depois anunciei - Vou sair agora. Fico
à espera de mais instruções. Quero acabar com isto de uma vez!
***
Esperei dois
dias pela nova missão e nunca o tempo demorou tanto a passar.
Lúcifer e
Pedro apareceram sem anúncio prévio, como era habitual. Não fizeram cerimónias,
nem se demoraram com delicadezas, indo directos ao assunto.
- Lulu White,
estamos aqui para a tua prova final, como combinado. Depois disso terás que te
decidir! – começou Pedro. – A tua sentença de morte foi suspensa durante este
tempo, ao longo do qual trabalhaste para nós. Esta é a redenção pelos pecados
que cometeste em vida, conforme te foi proposto.
- Sim, pois –
protestei entredentes – até parece que matar pessoas é um pecado menor do que
fazer sexo por dinheiro!
- Homens
corruptos, assassinos e escumalha do género! – pela primeira vez via Pedro a
exaltar-se, saindo da sua pose serena de Guardião das Portas do Céu. – O que tu
estás a fazer Lulu, é o resgate das almas perdidas. É diferente quando estás ao
serviço de uma causa maior.
Lucifer aproximou-se
o suficiente de mim para poder sentir o imenso calor que o seu corpo emanava.
Gotas de suor escorreram-me pelas costas abaixo, fruto da sua proximidade.
- Dois anos é
o bastante para poderes tomar a tua decisão. Demos-te as ferramentas de
trabalho de que precisavas. Explicámos-te que quem entra ao nosso serviço só
tem a hipótese de escolher para que lado trabalha: ou resgata estas almas para
os portões lá de cima ou para os lá de baixo. Caso contrário, acaba-se a
suspensão da morte e passas a ser mais uma na carneirada de almas sem salvação.
Este foi o acordo que fizeste connosco e está mais do que na hora de tomares
uma decisão!
Fui percorrida
por um arrepio e engoli em seco. De facto, esta era a única razão pela qual
continuava com as matanças: o medo de desaparecer de vez ou de ser atirada para
um buraco qualquer do universo que fizesse parecer os quadros de Bosch num
paraíso.
Pedro
aproximou-se e a temperatura baixou repentinamente, como se tivesse saído do
calor tórrido do deserto para dentro de um congelador.
- Depois desta
missão terás que fazer a tua escolha, Lulu. Nada de adiar como tens vindo a
fazer.
Assenti em
silêncio, tentando aparentar uma confiança que não sentia.
***
Os pormenores
da missão eram claros. Eliminar um político corrupto que estava à frente de uma
ONG. Aparentemente, o trabalho de beneficência que fazia em prol das crianças
desfavorecidas era apenas uma fachada para tráfico de órgãos e de seres humanos
em países de terceiro mundo.
Apesar de
saber que o homem era um criminoso, não consegui evitar que o meu estômago
desse uma volta ao rever mentalmente os pormenores requeridos para mais esta
matança.
- OK, respira
fundo. – murmurei entredentes para afastar o nervoso miudinho enquanto esperava
que a vítima chegasse à porta do bordel que usava como base de operações. –
Matá-lo é a parte mais fácil. Não será bonito, mas será mais fácil do que fazer
uma escolha.
Bati os pés no
passeio para tentar afastar o frio da noite. Quem inventou a mini-saia como
uniforme de trabalho para uma prostituta não devia saber o frio que fazia
aquela hora da noite naquele canto do mundo!
Trabalhar para
o Sr. Brasa ou para o Sr. Cubo de Gelo? A escolha não seria fácil, já que não
estavam assim tão distantes moralmente um do outro…
Um ficava com
as almas que se tinham perdido acidentalmente pelo caminho. O outro ficava com as
almas daqueles que refinavam a crueldade ao longo da vida, tendo feito uma
escolha propositada pelo mundo do crime e da depravação. Mas ainda assim nenhum
era meigo na hora do resgate, fazendo com que as mortes assumissem um nível de
sadismo doentio.
Mas por que
raio não me deixavam simplesmente morta e em paz?! Em vida tinha sido
prostituta, primeiro por necessidade, depois porque me acostumara à vida de
luxo que a minha profissão me proporcionava. Mas para além de fazer sexo por
dinheiro, nada mais tinha feito para merecer isto.
- Olá beleza,
pronta para uma noite de diversão? – perguntou a vítima, espreitando pela
fresta de vidro aberto.
Fiz o que se
poderá chamar de sorriso protocolar, mas quase vomitei por dentro ao ouvir
aquela frase chavão. Quando o vi pela primeira vez, apeteceu-me matá-lo ali
mesmo para acabar logo o assunto! Apesar do fato caro e de bom corte, a cara de
sapo retirava todo e qualquer vestígio da minha líbido. Ia ser uma longa noite.
A sedução
correu como previsto. O homem pedira exclusivamente os meus serviços e pagara
generosamente por eles. Levou-me a jantar num restaurante caro, onde nos
sentámos num canto discreto, antes de me enfiar num quarto de hotel.
A minha
experiência valeu-me bastante nessa noite. Sorri muito, falei pouco e mexi
competentemente o pé sob a mesa, para que o homem sentisse uma súbita urgência
em terminar o jantar.
- Nunca falha!
– pensei, sorrindo-lhe sedutoramente, enquanto calçava o sapato e ele pagava a
conta.
O quarto de
hotel era igual a tantos outros. Céus, como estava farta deles! Lençóis
brancos, colchas e cortinas de padrão duvidoso eram regra comum e este não era
excepção.
A vítima
aproximou-se, puxando-me atrás de si para a cama. Sentei-me de joelhos por cima
dele e levei uma mão ao peito, como se lhe fosse desabotoar a camisa, mas em
vez disso pousei a mão directamente sobre o seu coração.
- O que estás
a fazer? – perguntou, assustado.
Sabia
exactamente o que ele estava a sentir. O coração a mudar lentamente de ritmo, a
dificuldade em conseguir respirar, ao mesmo tempo que os olhos lhe começavam a
pregar partidas - as unhas da mão no seu peito a formarem umas estranhas garras
e os olhos verdes a ficarem completamente brancos, com chamas ardentes a dançar
lá dentro.
- Sabes todas
as pessoas a quem causaste sofrimento? Digamos que está na hora de pagares pelos
teus pecados… - respondi com a minha voz mais sedutora, ao mesmo tempo que
humedecia os lábios com a língua.
- Eu sou um
político respeitado! O que pensas que estás a fazer? Quem és tu?! – o ar de
terror era cada vez maior.
Por mim
acabava já com aquilo, mas o Sr. Brasa e o Sr. Cubo de Gelo queriam que eu
brincasse um pouco mais com ele antes de passar à parte em que o matava.
- Oh, és um
político sim, mas não vales nada enquanto pessoa! Todas as pessoas a quem
fingiste ajudar acabaram em contentores pestilentos e apertados a caminho de
outro lado qualquer do mundo, e hoje sabe-se lá o que são forçados a fazer!
Outros acabaram numa marquesa, os seus corpos esquartejados, num completo
desrespeito pela sua condição humana!
- E o que raio
é que isso te interessa? És algum anjo vingador ou quê?! Não passas de uma
prostituta. – conseguiu responder, apesar da dificuldade em manter um
raciocínio coerente.
- Tens razão,
sou o que sou, mas ao menos não o escondo de ninguém, nem me apresento ao mundo
com outra cara que não a minha.
O primeiro
golpe foi desferido sem piedade, causando dor sem o fazer perder os sentidos. A
prática tinha-me tornado exímia na arte de matar, como se já não soubesse fazer
mais nada para além de tirar vidas.
Desliguei a
mente do corpo para não correr o risco de ser atrapalhada pela minha
consciência, que insistia em gritar-me o quão errado era o que estava a fazer
nestas horas mais impróprias.
Comecei a
sentir o familiar sopro da alma a abandonar o corpo da vítima e preparei-me
para o que viria a seguir.
A Morte entrou
no quarto, pronta para vir recolher a alma, como era habitual. Curiosamente,
debaixo daquela fachada arrepiante, a Morte era mais agradável do que Lúcifer e
Pedro.
- Então, Lulu
White? Ouvi dizer que estás quase a tomar a tua decisão e que esta alma perdida
foi o teste final.
O enjoo
começava a instalar-se e a habitual fraqueza também, mas ainda consegui manter
um tom firme ao responder.
- É verdade.
Embora não seja fácil tomar uma decisão.
A Morte sorriu
e retirou a máscara que usava para assustar as vítimas, mostrando-me a sua
verdadeira face.
- Nunca é. Mas
isso obviamente depende de ti e daquilo em que acreditas.
- E se aquilo
em que eu acredito não me fizer escolher por nenhum dos dois? E se eu apenas
quiser finalmente alcançar a paz? Se não estiver na disposição de voltar a
matar? Se não quiser a redenção que eles me ofereceram?
A Morte deu-me
um sorriso sereno.
- E porque
achas que a verdadeira redenção é apenas a que eles te oferecem?
- Mas então,
se não trabalhar para Lúcifer ou para Pedro, o que me resta? A minha morte
definitiva está suspensa! Se me negar, és tu quem estará à minha espera e aí o
que será de mim? Vou desaparecer de vez. Não quero morrer.
A Morte
arqueou uma sobrancelha e sorriu de esguelha.
- Já alguma
vez me perguntaste o que está para além daquela porta? – perguntou, apontando
para a porta aberta atrás de si, geralmente por onde entrava e saía com as
almas recém capturadas.
Deixei-me cair
de joelhos, fazendo um esforço para conseguir raciocinar. As consequências de
despender grandes doses de energia ao tirar uma vida começavam a manifestar-se
em força.
- Não. Para
onde levas as almas que não as entregas ao Sr. Cubo de Gelo e ao Sr. Brasa? As
que não têm salvação ou que não aceitam as condições deles não são aniquiladas?
São levadas para o Purgatório ou algo do género?
- E queres
maior castigo para uma morte do que a própria vida? Começar tudo uma e outra e
outra vez? Aqueles que aceitam as condições de Lúcifer e Pedro já não voltam,
mas nem sempre essa é a melhor opção. É apenas a que se lhes aparenta a mais
fácil.
- Queres dizer
que são dois filhos da mãe sem escrúpulos a recrutar almas para as suas
próprias causas pessoais?
Já não
consegui ouvir a resposta da Morte, pois entretanto perdi os sentidos.
***
Recuperei a
consciência e apressei-me a sair dali sem ser vista. Cheguei ao bordel ainda
antes do nascer do sol e, enquanto tomava duche, ponderei sobre a decisão que
sabia ter que tomar.
Estava a sair
do banho quando os dois apareceram à minha frente. Nem sei porque ainda me
assustava ao vê-los materializarem-se daquela maneira.
- Um pouco de
decência e privacidade, sim? Encontramo-nos daqui a uma hora lá em baixo no
salão, se não se importarem?
Olharam um
para o outro e encolheram os ombros com indiferença, desaparecendo em seguida
com um «tudo bem» ainda ecoando pelo ar.
Preparei-me
lentamente para o encontro, mentalizando-me que aqueles poderiam ser os últimos
momentos da minha vida. Ou pelo menos do que mais se parecia com uma.
Aproximei-me
silenciosamente, sem um único barulho que denunciasse a minha presença, como me
tinham ensinado. Rápida, eficiente e mortífera, era no que me tinham tornado.
Uma máquina de matar.
Fechei os
olhos e respirei fundo. Desembainhei silenciosamente as espadas das bainhas nas
minhas costas. Tinham-se tornado as minhas armas de eleição no desempenho das
minhas funções de anjo vingador. As garras eram só para o espectáculo.
Lúcifer e
Pedro não tiveram tempo para se aperceberem do que lhes acontecera. Num instante
estavam na conversa, no outro estavam caídos no chão, com as cabeças decepadas
do corpo.
- Redenção? Seus
hipócritas filhos da mãe! Este é o merecido castigo por todas as almas que me
obrigaram a recrutar para as vossas causas doentias. – limpei as lâminas nas
suas roupas antes de as voltar a embainhar. – Quero lá saber da redenção! Está
demasiado frio lá em cima e demasiado calor lá em baixo. Acho que prefiro
voltar para aqui…
Subitamente,
apareceu a porta por onde a Morte costumava entrar para levar as almas.
- Vejo que
tomaste a tua decisão. – comentou, com ar casual assim que entrou, olhando para
os corpos que jaziam no chão.
- E eu presumo
que não seja pelas almas deles que estejas aqui.
A Morte
desviou-se para que eu pudesse passar, mas antes de entrar pela porta, fiz uma última
observação.
- Não cheguei
a ouvir o que me respondeste há pouco quando te perguntei se eles recrutavam as
almas para os seus propósitos pessoais.
O olhar da
Morte foi trespassado por um brilho que não decifrei, antes de me responder.
- Dizia-te que
somos todos filhos da mesma mãe…