terça-feira, 19 de março de 2013

E se um dia...



E se algum dia eu não disser que te amo, procura-me bem dentro da tua alma.
Serei aquela cuja presença se fará sentir, mesmo quando não estou lá. Serei aquela que te levará à loucura e ao desespero, mas que também te fará sonhar.
Aquela que te pedirá perdão quando achar que errou e que derramará lágrimas de tristeza por todas as injustiças do mundo.
Comigo conhecerás o desequilíbrio e a loucura, a calma e o refúgio. Viverás emoções intensas que te levarão ao limite. Entrarei de mansinho e esconder-me-ei no teu coração.
Se um dia achares que não te amo, procura-me por lá.

segunda-feira, 18 de março de 2013

O Canto da Sereia

Retomei a consciência lentamente. Sentia-me completamente dorida por ter estado caída durante o que me pareceram horas intermináveis no chão duro do quarto de hotel, embora a rigidez do corpo fosse o menos grave dos meus problemas.
O cheiro agridoce da matança invadiu-me as narinas e o som das gotas de sangue que ainda escorriam do corpo da vítima batiam lentamente no chão, deixando perceber que não tinha passado tanto tempo assim.
A luminosidade que entrava pela janela fez-me ser percorrida por um sentido de urgência. Percebi que tinha que sair dali rapidamente ou estaria perdida, pois não tardaria a amanhecer e com as primeiras horas do dia voltaria o movimento característico dos corredores de um hotel. Não podia ser vista e não me apetecia voltar a matar.
- Porra, isto tem que acabar! – exclamei, enraivecida.
Geralmente preferia as mortes limpas e sem grandes alaridos, mas a decisão não estava nas minhas mãos.
Apesar de ter resmungado em voz baixa, ainda assim sabia que eles iriam ouvir-me e de novo viriam no meu encalço. Não me enganei.
Mal tinha conseguido pôr-me de pé para me vestir quando os senti a invadirem o quarto. Duas figuras altas e imponentes, que impunham respeito a qualquer um. Eram completamente diferentes, mas ainda assim eu sabia que essa diferença era mais superficial do que aparentava.
- Ao menos podiam ter-me deixado vestir!
- Sempre a reclamar. Não sei se já percebeste, mas o corpo humano para nós não vale nada. – respondeu Lúcifer apontando para o corpo da vítima a seus pés, enquanto me dava um dos seus olhares gélidos. - Podias ao menos mostrar-te agradecida pela segunda oportunidade!
 Os seus olhos conseguiam matar qualquer pessoa sem que para isso ele tivesse que mover um dedo, mas não surtiam qualquer efeito em mim. Pelo menos não enquanto estivesse no que eu gostava de definir como «período de estágio», o que era uma vantagem, já que a minha tendência para a insubordinação era lendária entre os meus iguais.
Pedro pôs-lhe uma mão sobre o ombro num gesto apaziguador. Era o único que lhe conseguia tocar sem se transformar num monte de cinzas.
- Calma Lúcifer, sabes que os caminhos da justiça divina levam o seu tempo a serem compreendidos. Dá-lhe tempo e ela habitua-se!
Revirei os olhos com impaciência, sabendo de antemão o discurso que vinha por aí. Virei-lhes as costas e fui para a casa de banho para me lavar e vestir, sem me importar minimamente com a porta, já que privacidade era uma palavra que não existia para aqueles dois.
- Dois anos, Pedro! É tempo que chegue para compreender os meios da justiça divina, não achas? Por mim basta!
- O que sugeres então?
- Um último trabalho. E depois terá que se decidir.
A minha audição apurada afinou-se ainda mais e todos os cabelos do meu corpo se eriçaram com a mudança no discurso de sempre. Aquilo era uma novidade. Geralmente seguia-se uma palestra sobre como me tinham resgatado da morte depois de alguém me ter assassinado numa noite fria, imediatamente após lhes ter prestado uns quantos favores sexuais. Sobre como a minha alma estava suja mas podia ser redimida se aceitasse o acordo que me ofereciam. Sobre a importância do trabalho que faria ao serviço da salvação das almas.
Sim, pois, como se matar pessoas para me redimir fosse assim tão diferente do que tinham feito comigo! Tretas.
Saí da casa de banho e encarei-os, de mão na anca e uma expressão de sarcasmo no rosto.
- Adoro ouvir boas ideias logo de manhã, mas primeiro tenho que sair daqui. Não tenho a capacidade de teletransportar-me de um sítio para o outro, já que alguém – acenei com o queixo na direcção de Pedro – não incluiu esse entre os meus poderes…
Ele não perdeu o seu ar complacente.
- Quando completares o período experimental virão as outras capacidades. Até lá, ficarás praticamente como a simples humana que ainda és. Devias estar grata com as pequenas melhorias que te fizemos, porque te demos as ferramentas necessárias para desempenhares o teu trabalho. Os humanos não as têm e ainda assim não são menos competentes quando se matam uns aos outros! – respondeu com aquele ar sereno que me enervava.
Não resisti a dar uma gargalhada, mas não perdi o ar sarcástico.
- Eu já era prostituta antes de morrer, e das boas, por sinal! A única coisa em que me tornaram competente foi na arte de matar. – fiz uma ligeira pausa, tentando acalmar a raiva que estava em ebulição. Depois anunciei - Vou sair agora. Fico à espera de mais instruções. Quero acabar com isto de uma vez!

***

Esperei dois dias pela nova missão e nunca o tempo demorou tanto a passar.
Lúcifer e Pedro apareceram sem anúncio prévio, como era habitual. Não fizeram cerimónias, nem se demoraram com delicadezas, indo directos ao assunto.
- Lulu White, estamos aqui para a tua prova final, como combinado. Depois disso terás que te decidir! – começou Pedro. – A tua sentença de morte foi suspensa durante este tempo, ao longo do qual trabalhaste para nós. Esta é a redenção pelos pecados que cometeste em vida, conforme te foi proposto.
- Sim, pois – protestei entredentes – até parece que matar pessoas é um pecado menor do que fazer sexo por dinheiro!
- Homens corruptos, assassinos e escumalha do género! – pela primeira vez via Pedro a exaltar-se, saindo da sua pose serena de Guardião das Portas do Céu. – O que tu estás a fazer Lulu, é o resgate das almas perdidas. É diferente quando estás ao serviço de uma causa maior.
Lucifer aproximou-se o suficiente de mim para poder sentir o imenso calor que o seu corpo emanava. Gotas de suor escorreram-me pelas costas abaixo, fruto da sua proximidade.
- Dois anos é o bastante para poderes tomar a tua decisão. Demos-te as ferramentas de trabalho de que precisavas. Explicámos-te que quem entra ao nosso serviço só tem a hipótese de escolher para que lado trabalha: ou resgata estas almas para os portões lá de cima ou para os lá de baixo. Caso contrário, acaba-se a suspensão da morte e passas a ser mais uma na carneirada de almas sem salvação. Este foi o acordo que fizeste connosco e está mais do que na hora de tomares uma decisão!
Fui percorrida por um arrepio e engoli em seco. De facto, esta era a única razão pela qual continuava com as matanças: o medo de desaparecer de vez ou de ser atirada para um buraco qualquer do universo que fizesse parecer os quadros de Bosch num paraíso.
Pedro aproximou-se e a temperatura baixou repentinamente, como se tivesse saído do calor tórrido do deserto para dentro de um congelador.
- Depois desta missão terás que fazer a tua escolha, Lulu. Nada de adiar como tens vindo a fazer.
Assenti em silêncio, tentando aparentar uma confiança que não sentia.

***

Os pormenores da missão eram claros. Eliminar um político corrupto que estava à frente de uma ONG. Aparentemente, o trabalho de beneficência que fazia em prol das crianças desfavorecidas era apenas uma fachada para tráfico de órgãos e de seres humanos em países de terceiro mundo.
Apesar de saber que o homem era um criminoso, não consegui evitar que o meu estômago desse uma volta ao rever mentalmente os pormenores requeridos para mais esta matança.
- OK, respira fundo. – murmurei entredentes para afastar o nervoso miudinho enquanto esperava que a vítima chegasse à porta do bordel que usava como base de operações. – Matá-lo é a parte mais fácil. Não será bonito, mas será mais fácil do que fazer uma escolha.
Bati os pés no passeio para tentar afastar o frio da noite. Quem inventou a mini-saia como uniforme de trabalho para uma prostituta não devia saber o frio que fazia aquela hora da noite naquele canto do mundo!
Trabalhar para o Sr. Brasa ou para o Sr. Cubo de Gelo? A escolha não seria fácil, já que não estavam assim tão distantes moralmente um do outro…
Um ficava com as almas que se tinham perdido acidentalmente pelo caminho. O outro ficava com as almas daqueles que refinavam a crueldade ao longo da vida, tendo feito uma escolha propositada pelo mundo do crime e da depravação. Mas ainda assim nenhum era meigo na hora do resgate, fazendo com que as mortes assumissem um nível de sadismo doentio.
Mas por que raio não me deixavam simplesmente morta e em paz?! Em vida tinha sido prostituta, primeiro por necessidade, depois porque me acostumara à vida de luxo que a minha profissão me proporcionava. Mas para além de fazer sexo por dinheiro, nada mais tinha feito para merecer isto.
- Olá beleza, pronta para uma noite de diversão? – perguntou a vítima, espreitando pela fresta de vidro aberto.
Fiz o que se poderá chamar de sorriso protocolar, mas quase vomitei por dentro ao ouvir aquela frase chavão. Quando o vi pela primeira vez, apeteceu-me matá-lo ali mesmo para acabar logo o assunto! Apesar do fato caro e de bom corte, a cara de sapo retirava todo e qualquer vestígio da minha líbido. Ia ser uma longa noite.
A sedução correu como previsto. O homem pedira exclusivamente os meus serviços e pagara generosamente por eles. Levou-me a jantar num restaurante caro, onde nos sentámos num canto discreto, antes de me enfiar num quarto de hotel.
A minha experiência valeu-me bastante nessa noite. Sorri muito, falei pouco e mexi competentemente o pé sob a mesa, para que o homem sentisse uma súbita urgência em terminar o jantar.
- Nunca falha! – pensei, sorrindo-lhe sedutoramente, enquanto calçava o sapato e ele pagava a conta.
O quarto de hotel era igual a tantos outros. Céus, como estava farta deles! Lençóis brancos, colchas e cortinas de padrão duvidoso eram regra comum e este não era excepção.
A vítima aproximou-se, puxando-me atrás de si para a cama. Sentei-me de joelhos por cima dele e levei uma mão ao peito, como se lhe fosse desabotoar a camisa, mas em vez disso pousei a mão directamente sobre o seu coração.
- O que estás a fazer? – perguntou, assustado.
Sabia exactamente o que ele estava a sentir. O coração a mudar lentamente de ritmo, a dificuldade em conseguir respirar, ao mesmo tempo que os olhos lhe começavam a pregar partidas - as unhas da mão no seu peito a formarem umas estranhas garras e os olhos verdes a ficarem completamente brancos, com chamas ardentes a dançar lá dentro.
- Sabes todas as pessoas a quem causaste sofrimento? Digamos que está na hora de pagares pelos teus pecados… - respondi com a minha voz mais sedutora, ao mesmo tempo que humedecia os lábios com a língua.
- Eu sou um político respeitado! O que pensas que estás a fazer? Quem és tu?! – o ar de terror era cada vez maior.
Por mim acabava já com aquilo, mas o Sr. Brasa e o Sr. Cubo de Gelo queriam que eu brincasse um pouco mais com ele antes de passar à parte em que o matava.
- Oh, és um político sim, mas não vales nada enquanto pessoa! Todas as pessoas a quem fingiste ajudar acabaram em contentores pestilentos e apertados a caminho de outro lado qualquer do mundo, e hoje sabe-se lá o que são forçados a fazer! Outros acabaram numa marquesa, os seus corpos esquartejados, num completo desrespeito pela sua condição humana!
- E o que raio é que isso te interessa? És algum anjo vingador ou quê?! Não passas de uma prostituta. – conseguiu responder, apesar da dificuldade em manter um raciocínio coerente.
- Tens razão, sou o que sou, mas ao menos não o escondo de ninguém, nem me apresento ao mundo com outra cara que não a minha.
O primeiro golpe foi desferido sem piedade, causando dor sem o fazer perder os sentidos. A prática tinha-me tornado exímia na arte de matar, como se já não soubesse fazer mais nada para além de tirar vidas.
Desliguei a mente do corpo para não correr o risco de ser atrapalhada pela minha consciência, que insistia em gritar-me o quão errado era o que estava a fazer nestas horas mais impróprias.
Comecei a sentir o familiar sopro da alma a abandonar o corpo da vítima e preparei-me para o que viria a seguir.
A Morte entrou no quarto, pronta para vir recolher a alma, como era habitual. Curiosamente, debaixo daquela fachada arrepiante, a Morte era mais agradável do que Lúcifer e Pedro.
- Então, Lulu White? Ouvi dizer que estás quase a tomar a tua decisão e que esta alma perdida foi o teste final.
O enjoo começava a instalar-se e a habitual fraqueza também, mas ainda consegui manter um tom firme ao responder.
- É verdade. Embora não seja fácil tomar uma decisão.
A Morte sorriu e retirou a máscara que usava para assustar as vítimas, mostrando-me a sua verdadeira face.
- Nunca é. Mas isso obviamente depende de ti e daquilo em que acreditas.
- E se aquilo em que eu acredito não me fizer escolher por nenhum dos dois? E se eu apenas quiser finalmente alcançar a paz? Se não estiver na disposição de voltar a matar? Se não quiser a redenção que eles me ofereceram?
A Morte deu-me um sorriso sereno.
- E porque achas que a verdadeira redenção é apenas a que eles te oferecem?
- Mas então, se não trabalhar para Lúcifer ou para Pedro, o que me resta? A minha morte definitiva está suspensa! Se me negar, és tu quem estará à minha espera e aí o que será de mim? Vou desaparecer de vez. Não quero morrer.
A Morte arqueou uma sobrancelha e sorriu de esguelha.
- Já alguma vez me perguntaste o que está para além daquela porta? – perguntou, apontando para a porta aberta atrás de si, geralmente por onde entrava e saía com as almas recém capturadas.
Deixei-me cair de joelhos, fazendo um esforço para conseguir raciocinar. As consequências de despender grandes doses de energia ao tirar uma vida começavam a manifestar-se em força.
- Não. Para onde levas as almas que não as entregas ao Sr. Cubo de Gelo e ao Sr. Brasa? As que não têm salvação ou que não aceitam as condições deles não são aniquiladas? São levadas para o Purgatório ou algo do género?
- E queres maior castigo para uma morte do que a própria vida? Começar tudo uma e outra e outra vez? Aqueles que aceitam as condições de Lúcifer e Pedro já não voltam, mas nem sempre essa é a melhor opção. É apenas a que se lhes aparenta a mais fácil.
- Queres dizer que são dois filhos da mãe sem escrúpulos a recrutar almas para as suas próprias causas pessoais?
Já não consegui ouvir a resposta da Morte, pois entretanto perdi os sentidos.

***

Recuperei a consciência e apressei-me a sair dali sem ser vista. Cheguei ao bordel ainda antes do nascer do sol e, enquanto tomava duche, ponderei sobre a decisão que sabia ter que tomar.
Estava a sair do banho quando os dois apareceram à minha frente. Nem sei porque ainda me assustava ao vê-los materializarem-se daquela maneira.
- Um pouco de decência e privacidade, sim? Encontramo-nos daqui a uma hora lá em baixo no salão, se não se importarem?
Olharam um para o outro e encolheram os ombros com indiferença, desaparecendo em seguida com um «tudo bem» ainda ecoando pelo ar.
Preparei-me lentamente para o encontro, mentalizando-me que aqueles poderiam ser os últimos momentos da minha vida. Ou pelo menos do que mais se parecia com uma.
Aproximei-me silenciosamente, sem um único barulho que denunciasse a minha presença, como me tinham ensinado. Rápida, eficiente e mortífera, era no que me tinham tornado. Uma máquina de matar.
Fechei os olhos e respirei fundo. Desembainhei silenciosamente as espadas das bainhas nas minhas costas. Tinham-se tornado as minhas armas de eleição no desempenho das minhas funções de anjo vingador. As garras eram só para o espectáculo.
Lúcifer e Pedro não tiveram tempo para se aperceberem do que lhes acontecera. Num instante estavam na conversa, no outro estavam caídos no chão, com as cabeças decepadas do corpo.
- Redenção? Seus hipócritas filhos da mãe! Este é o merecido castigo por todas as almas que me obrigaram a recrutar para as vossas causas doentias. – limpei as lâminas nas suas roupas antes de as voltar a embainhar. – Quero lá saber da redenção! Está demasiado frio lá em cima e demasiado calor lá em baixo. Acho que prefiro voltar para aqui…
Subitamente, apareceu a porta por onde a Morte costumava entrar para levar as almas.
- Vejo que tomaste a tua decisão. – comentou, com ar casual assim que entrou, olhando para os corpos que jaziam no chão.
- E eu presumo que não seja pelas almas deles que estejas aqui.
A Morte desviou-se para que eu pudesse passar, mas antes de entrar pela porta, fiz uma última observação.
- Não cheguei a ouvir o que me respondeste há pouco quando te perguntei se eles recrutavam as almas para os seus propósitos pessoais.
O olhar da Morte foi trespassado por um brilho que não decifrei, antes de me responder.
- Dizia-te que somos todos filhos da mesma mãe…