segunda-feira, 5 de março de 2012

Quatro dentaduras e um copo de vinho: Parte 5 - "Vingança - Beatriz"

(continuação)

A esplanada estava praticamente cheia de gente. A narrativa do grupo de amigas tinha sofrido uma pausa porque o empregado de mesa andava a atender os clientes que tinham acabado de chegar.
Todos tinham curiosidade em saber porque razão tinham aquelas senhoras as dentaduras dentro dos copos e a todos sem excepção o empregado respondia com um sorriso:
- Bem, é uma longa história. Porque não ficam para ouvir?
Quando finalmente regressou à mesa do grupo das velhas senhoras, a conversa girava à volta do filho da velha senhora de ar doce e majestoso que se chamava Beatriz e que hoje era já um homem adulto e bem sucedido na vida, mas aparentemente não tão bem sucedido no amor.
- Oh, eu acho que ele está a ser parvo!  - dizia a velha senhora que se chamava Madalena.
- Bem, eu não tenho assim tanta certeza, mas quem sou eu para dizer alguma coisa? - dizia a sua amiga Marta.
Inês mantinha-se calada e pensativa, como se esta história lhe fizesse lembrar de um certo modo a sua e quando falou, fê-lo num tom suave e doce.
- Beatriz, o André é um homem feito. Foi educado por uma mulher fantástica que, apesar de ter uma vida profissional intensa e em constantes viagens, nunca deixou de o acompanhar em todas as horas da sua vida. E foi criado no meio de nós todas também. A sua sensibilidade para o mundo das mulheres está presente, mas não deixa de ser homem. E tu sabes como por vezes os homens precisam de um empurrãozinho...
- Eu sei minha querida, mas não quero ser aquela mãe metediça. Nunca me meti na vida dele e não é agora que o vou fazer! - respondeu a sua amiga.
- Então não te metas como só tu te sabes não meter!!! - a resposta de Marta foi pronta e provocou uma risada geral entre as quatro.
O empregado percebeu que se tratava de mais um acontecimento qualquer das suas vidas e que devia ser mais uma história fantástica, com um rasgo de loucura como as que tinha ouvido até ao momento.
- Diga-me jovem, se você amasse loucamente uma pessoa mas ainda não tivesse dado por isso? E se fosse demasiado orgulhoso para o reconhecer? Ou depois de o reconhecer, se ainda assim fosse demasiado teimoso para o admitir? O que acha que as pessoas à sua volta deviam fazer? - perguntou-lhe a velha senhora Beatriz, inclinando-se para a frente pronta a escutar o que ele tinha para dizer.
Um rasgo de curiosidade invadia-lhe o olhar e o empregado sentiu-se um pouco baralhado. Havia demasiadas coisas a pesar e não ia conseguir dar uma resposta imediata...
- Posso ir pensando um pouco sobre esse assunto? Não sei se lhe consigo dizer de imediato se apreciaria uma mãe intrometida ou não. Quero dizer, era bom um empurrãozinho mas por outro lado acho que não deveria aceitar muito bem se este fosse demasiado óbvio...
- Vá pensando meu jovem, e enquanto isso vou-lhe contar a minha história.
A animação das conversas que se faziam ouvir na esplanada baixaram de tom, naquele entardecer caloroso e pintado em tons dourados, e toda a gente se preparou para a ouvir.
- Bem, depois de ter saído de um pequena aldeia para uma cidade grande como era Lisboa e de ter caído no recinto da faculdade em pleno primeiro dia de aulas, achava que conseguiria sobreviver a tudo. Durante esses quatro anos fui uma das mais destemidas do grupo, a par com a Eugénia e a Francisca. Quando acabámos o curso, eis que me vi completamente perdida na vida. Regressar a uma aldeia onde viviam menos pessoas que no dormitório das raparigas parecia-me o mais absoluto dos horrores, mas foi o que fiz.
Dei por mim a morrer lentamente, no meio de uma população envelhecida, onde nada acontecia.
Depois de ter terminado o curso com uma média brilhante, a minha rotina diária passava agora pela lida da casa e por cuidar dos dois pirralhos da minha irmã mais velha.
Passaram-se dois anos nisto e finalmente não aguentei. Numa noite em que estava de facto cansada demais para pensar no que estava a fazer, deixei toda a gente deitar-se e rumei ao meu quarto. Abri a mala de viagem que continuava guardada debaixo da minha cama desde que tinha regressado a casa dois anos antes e arrumei a minha roupa e alguns dos meus pertences. Depois fui ao pote da cozinha onde a minha mãe costumava ter algum dinheiro guardado e tirei o suficiente para a passagem do autocarro até Lisboa. Sabia que lhe ia fazer falta, mas também sabia que talvez um dia me conseguisse perdoar.
Abri a porta sem fazer barulho e preparava-me para sair, quando ouvi uma voz atrás de mim.
"- Onde pensas que vais?"
Era a minha irmã. Tinha-me esquecido que o meu cunhado estava bêbedo demais para sair do sofá e que eles tinham ficado lá a dormir.
Nessa altura senti o chão a fugir-me debaixo dos pés. Foi como respirar o ar puro da liberdade e de repente ter grilhões a fecharem-se à frente dos meus olhos...
Parei e voltei-me para trás, com as lágrimas quase a saltarem-me dos olhos, mas respirei fundo e tomei coragem para lhe responder.
"- Vou-me embora Amélia e não me podes impedir!"
Para minha surpresa a minha irmã abriu um sorriso e disse-me simplesmente:
"- Estava a ver até quando ias aguentar..."
Nessa altura o chão fugiu-me mesmo debaixo dos pés. Esperava tudo da Amélia menos esta reacção! Ela, a professora da escola primária da aldeia, mãe de família, moça dedicada ao seu marido sem olhar para mais ninguém a vida toda...como é que ela me poderia compreender e saber o que eu estava a passar?
A minha irmã abraçou-me e eu deixei cair as lágrimas que tinha estado a segurar. Ela agarrou-me depois na mão e puxou-me para dentro. Sentou-me à mesa e começou a ferver água para o chá. E depois de nos servir duas chávenas de chá fumegante e reconfortante, a minha irmã Amélia falou.
"- Sabes Beatriz, tu és uma aluna brilhante. Tinhas tudo na vida para ser uma jornalista de sucesso e fazer uma carreira. Porque raio não ficaste tu na cidade? Achavas realmente que ias conseguir trabalhar aqui? Era esse o teu objectivo quando saíste para tirar o teu curso? Foi para isso que queimaste as pestanas e te mataste a trabalhar durante aqueles anos? Para acabares como a mãe e a criares os meus filhos?
Não Beatriz, tu sabes que a tua vida não poderá ser nunca aqui na aldeia...
Hoje, depois de uma festa de aniversário do pai recheada de velhos e dos seus filhos em idade casadoira, percebeste finalmente que não aguentas mais, certo?"
Apenas fui capaz de acenar afirmativamente. Não porque estivesse emocionada, mas porque a atitude dela me tinha deixado sem palavras. E então a minha irmã continuou.
"- Sabes que durante algum tempo ponderei não voltar. Mas no meu caso a situação era diferente. Eu ia voltar para ensinar aqui na escola, não ia voltar para tomar conta da casa com a mãe. E depois havia o Eduardo, que ia voltar porque os negócios da família estão todos por aqui. Não havia como não voltar para casa e hoje dou graças por isso porque sou muito feliz.
Mas tu não tinhas nada que te fizesse voltar. Porque o fizeste?"
Nessa altura simplesmente respondi a verdade. E a verdade é que não sabia! Todas as minhas amigas tinham voltado para casa e para as suas vidas e eu simplesmente não pensei em ficar sozinha na cidade grande. E também nunca pensei em ficar tanto tempo na aldeia. A verdade é que o tempo fora passando e eu nunca mais tinha conseguido libertar-me daquela vida. Fosse por comodidade, fosse por qualquer outra razão, nunca tinha tido uma motivação forte para sair dali. Mas naquela noite, depois de perceber que o meu pai tinha organizado aquela festa de aniversário propositadamente para que os amigos e seus respectivos filhos me pudessem conhecer, foi o ponto de viragem. Simplesmente não me via naquela vida durante mais tempo.
Lembro-me que já era muito tarde. Eu tinha trabalhado o dia todo e a noite toda na casa e na cozinha para que tudo estivesse perfeito na festa do meu pai. Isso e o chá estavam a deixar-me extremamente sonolenta, especialmente depois de me ter passado a adrenalina da fuga eminente.
A minha irmã disse-me então:
"- Anda, vamos dormir. Amanhã é Domingo e a familia estará toda reunida. Vamos fazer as coisas como deve ser."
Estou grata à minha querida Amélia até hoje. Graças a ela não cheguei desamparada à grande cidade como aconteceu a muitas outras mulheres.
No dia seguinte ela ajudou-me a falar com os meus pais. Ao contrário do que eu pensava, eles apoiaram a minha decisão de sair de casa para a cidade de Lisboa. Mas não podiam deixar-me sair sem a mínima garantia que iria viver em boas condições e sem trabalho.
Também ficou insituído que enquanto as condições ideais não estivessem garantidas eu iria trabalhar noutra coisa qualquer para fazer um "pé de meia" que me permitisse aguentar durante algum tempo.
Como qualquer boa mãe com uma filha em idade de casar, também a minha tinha começado a fazer o meu enxoval. Assim, passou-se ainda mais um ano até que estivessem reunidas as condições básicas para o meu regresso a Lisboa.
Nessa altura falei com a Eugénia e o António que me ajudaram a encontrar uma casa com uma renda em condições de a poder pagar. É claro que nessa altura estava muito longe de saber a realidade em que a nossa amiga vivia, porque nunca deixou transparecer nada. Na realidade, que me lembre também nunca estivemos sozinhas. Ou com o marido ou com a sogra, a minha querida amiga vinha sempre acompanhada. Mas mesmo assim, nunca deixou de me ajudar.
Entre o meu pai e o meu cunhado, ambos com carro já naquela época, arrumei as bagagens e rumei a uma nova vida. A minha mãe ficou comigo durante essa primeira semana e a Eugénia e a sogra também vieram para me ajudar a instalar. Éramos quatro mulheres a trabalhar dentro de casa: limpámos, esfregámos, arrumámos móveis, fizemos cortinas...
Quando penso nessa semana, sinto imensas saudades. A vida era tão simples e contentávamos-nos com pouca coisa. O que interessava era ter um mínimo de conforto.
Ao fim dessa semana, o António tinha-me arranjado um emprego. Curioso como me ajudou tanto e fez tanto mal à minha amiga, a sua esposa, a que dizia tanto amar...enfim...conforme dizia, arranjou-me emprego no escritório de um advogado seu amigo, que estava a precisar de uma assistente.
Não posso dizer que fosse o emprego que idealizara, mas ele era um senhor muito bondoso e pagava-me muito bem. Passei lá os anos seguintes, até que, uns meses antes da morte da Eugénia o meu pai faleceu. O Dr. Tavares, meu patrão, deixou-me ir durante dois meses à aldeia para poder tratar de tudo e apoiar a minha mãe naqueles primeiros tempos difíceis. Mas eis que antes da minha partida ele vem com uma proposta que me deixou de novo com os sentidos alerta e com vontade de fugir, como naquela noite em que decidira sair de casa: o meu bondoso patrão pediu-me em casamento!
O empregado de mesa abriu um sorriso rasgado e riu-se baixinho enquanto comentava:
- Ora deixe-me adivinhar: com mais 20 anos que você, brilhantina no cabelo, bigode que se molha na sopa e solteiro sem lhe conhecer uma única mulher.
Beatriz lançou uma gargalhada bem disposta.
- Quase, meu caro. De facto o Dr. Tavares era viúvo, mas quanto ao resto o retrato é esse, sem tirar nem pôr!
- E o que lhe respondeu? - perguntou a rapariga do jovem casal.
- Eu gostava muito dele, sabem? Muito mesmo. Mas porque o considerava um segundo pai. Foi sempre um bom amigo, mas nunca teria sido o amante por quem ansiava. Por uma questão de respeito, e também para ganhar tempo e coragem, disse-lhe que de momento não me sentia em condições de lhe responder por causa do forte abalo que sofrera com a morte do meu pai. Mas assegurei-lhe que ia pensar na sua proposta com toda a seriedade e carinho. No próprio dia arrumei a bagagem e apanhei o autocarro para a minha aldeia e, pela primeira vez em anos, apeteceu-me enfiar a cabeça no buraco e de lá não mais sair!
Precisamente quando me preparava para voltar a Lisboa e ao trabalho, chegou a notícia da morte da Eugénia. Posso dizer-vos que a minha amiga me salvou a vida, sabem?
Acreditem ou não, estava tão miserável e solitária que me passou pela cabeça aceitar a sua proposta. Depois a Eugénia morreu e lemos os seus diários. Lá, ela dizia que algumas das supostas reuniões onde o António ia depois do jantar eram em casa do seu amigo Tavares. Ela sabia que havia álcool e mulheres à mistura e descrevia ao pormenor tudo o que o António dizia com as suas bebedeiras, imediatamente antes de lhe começar a bater e a violar.
Somei dois mais dois. O Tavares seu amigo era o Dr. Tavares, meu patrão, o homem que me tinha feito uma proposta de casamento desapaixonada como se de um contrato se tratasse. Inicialmente não quis acreditar. Ele tinha sido sempre tão bondoso comigo! Sempre me tinha ajudado em tudo!
- O que é que você fez com essa informação? - perguntou o cavalheiro de olhos azuis.
- A única coisa que poderia fazer: fui ao escritório dele na semana seguinte e despedi-me depois de recusar educadamente a sua proposta de casamento. - um sorriso matreiro apareceu no seu rosto - E depois vinguei-me!
Ouviram-se algumas risadas ao longo da esplanada, sinal que a conversa estava de novo a ser atentamente escutada. O empregado do bar já nem se esforçava por fingir que estava a trabalhar e continuava encostado à porta de saída para a esplanada de onde conseguia ouvir o relato de Beatriz.
Beatriz continuou a contar a sua história.
- Bem, como estão recordados, aqui a Madalena conseguiu por esses dias a colocação num dos principais jornais nacionais. Com a ajuda do tal ex-namorado da ex-colega de trabalho dela, e de mais alguns colegas do meio jornalístico, eis que pusemos em prática um plano para apanhar o Dr. Tavares em flagrante delito no deboche e na depravação. Ele, que era um advogado de renome e muito respeitado na sociedade lisboeta, ia ser alvo de uma emboscada! A história saiu no jornal e foi um escândalo na altura. 
O cavalheiro de olhos azuis abriu muito a boca, com ar de espanto e admiração.
- Eu lembro-me dessa história! Lembro-me perfeitamente disso, porque ele era advogado de um tio meu e nós chegámos a jantar com ele lá em casa. E houve uma coisa que nunca me saiu da cabeça: o ódio de estimação com que a minha irmã lhe ficou até ao dia em que a notícia apareceu nos jornais! Ela nunca me quis contar o porquê desse ódio de estimação, mas agora começo a entender alguma coisa. Pensando bem, acho que sei mesmo o que terá acontecido...
O empregado de mesa aproximou-se e deu uma palmadinha ternurenta na mão da velha senhora.
- Acho que muitas mulheres lhe agradeceram, mesmo não se tendo sabido de onde veio a denúncia.
A velha senhora sorriu de uma forma serena, como se a sua missão de vida se tivesse cumprido naquele dia e a paz a tivesse acompanhado desde então. Quando falou, dirigiu-se inicialmente ao cavalheiro do olhar azul como o mar, mas depois voltou a falar para todos.
- Ainda bem que pude ajudar uma só pessoa que seja. Não o fiz para ter fama ou reconhecimento. Mas de um certo modo senti-me muito feliz por ele não poder voltar a fazer mal a mais ninguém. Foi quase como se tivesse conseguido vingar a Eugénia, a sua morte estúpida e todo o esforço que fez para nos fazer chegar a sua mensagem. Foi também uma forma de lhe agradecer. Porque com os seus diários e as suas revelações ajudou-me a não ir parar à sua própria vida. Quem sabe se não teria tido um destino como o seu?
- Então e depois, o que aconteceu a seguir? Você ficou sem emprego e de novo sem meio de subsistência... - perguntou o rapaz do jovem casal.
- Bem, na noite em que a notícia saiu no jornal, a edição esgotou logo às primeiras horas da manhã. O director do jornal quis conhecer a fonte da noticia e o tal rapaz que tinha arranjado emprego à Madalena apresentou-me. Acabei por começar a trabalhar no dia seguinte, na secretária ao lado da minha amiga. Mas acabei por me especializar em não estar por lá.
- Como assim?
- Bem, eu não tinha marido, não tinha filhos, não tinha ninguém que me prendesse. E o meu espírito aventureiro foi aguçado quando conheci o John, um correspondente nosso em Inglaterra. Quando o conheci fiquei apaixonada pelo seu espírito aventureiro, pela sua paixão pela vida e pelas pessoas.
Muitas vezes o jornalismo consegue raiar um pouco a espionagem e, depois da minha história com o Dr. Tavares, fui muitas enviada com o John para cobrir acontecimentos internacionais de extrema importância. Mesmo quando as coisas ainda não eram públicas ou "oficiais", geralmente já lá estávamos. Hospedávamos-nos em hotéis, como se fossemos um casal em viagem de férias e assim conseguíamos "farejar" as notícias como nenhum outro.
- Espere! - interrompeu de novo o cavalheiro de olhos azuis - Você está a falar do John Carpenter? O famoso correspondente de guerra?
Beatriz suspirou com um misto de saudade e tristeza.
- Sim, dele mesmo.
- Mas ele não morreu num grave acidente de viação na União Soviética?
Madalena acariciou a mão da amiga e foi ela quem respondeu.
- Oficialmente essa é a versão da história que é contada a quem não sabe a verdade. Estávamos em plena Guerra Fria e o John e a Beatriz era suposto irem como casal em viagem. Mas a União Soviética tinha olhos e ouvidos em todo o lado e o John era extremamente conhecido a nível internacional. Foi-lhe permitida a entrada no país, mas já não o deixaram sair. Por várias vezes a sua voz se tinha insurgido contra a o regime russo e isso valeu-lhe uma morte dolorosa e brutal. Felizmente que conseguimos retirar de lá a Beatriz a tempo.
- Foi a escolha mais difícil que tive que fazer em toda a minha vida. Quando os militares o levaram, soube instintivamente que já não voltaria a vê-lo. O plano inicial era formarmos um casal, mas recebemos algumas informações preocupantes e então decidimos viajar separados. Eu iria fazer uma cobertura inofensiva, sobre a cultura e hábitos do país, uma matéria de cariz mais feminino e menos político. Mal sabiam eles que eu era o backup do John. Todas as informações eram emitidas em duplicado. Ele ficava com uma cópia e eu com outra. No dia em que o levaram, eu estava mesmo quase a chegar ao pé dele. Consegui disfarçar a tempo e escapar aos olhos dos militares. Mas só soube o que lhe tinha acontecido mais de uma semana depois.
A partir daí jurei abraçar a sua missão de vida e continuar a dar voz aos mais desfavorecidos.
- Mas os planos saíram-te furados... - interrompeu a sua amiga Inês com um sorriso matreiro - ...e a "camisinha" também!
- Eu e o John éramos amantes. Isso nunca foi segredo para ninguém. Acho que fizemos faísca desde o primeiro momento em que nos vimos. Mas sermos pais não estava nos nossos planos de vida... Mais uma vez o destino mostrou-se matreiro. Ainda não tinha acabado de enterrar o John quando descobri que estava grávida.
- Caramba! Então e depois? - perguntou o empregado de mesa.
- Bem, depois de um momento de choque inicial, resolvi ter esta criança. Achei que era uma forma de conseguir prolongar a vida do John de alguma forma. O nosso filho é o seu maior legado, independentemente de todo o trabalho que fez ao longo da vida. Durante os primeiros anos foi preciso muita ajuda das minhas amigas para que pudesse continuar a ir de viagem. Nessas alturas o André tinha que ficar em casa de uma delas. Depois de uma boa dose de culpa inicial, descobri que ele de facto adorava estes "acampamentos" em casa das tias emprestadas. Isso fez com que me conseguisse concentrar efectivamente na cobertura das histórias que estava a fazer no momento.
Acho que no fundo devia mesmo agradecer ao Sr. Tavares por me ter proporcionado uma vida tão abençoada!
A gargalhada foi geral. 
- E o que lhe aconteceu? - quis saber a rapariga do jovem casal.
- Bem, confesso que lhe perdi o rasto, mas consta-se que terá ido para uma cidade do interior.
O sol não passava agora de uma ténue mancha alaranjada ao fundo do horizonte e a brisa que vinha do mar tinha arrefecido ligeiramente. Mas ali naquela esplanada permanecia uma espécie rara de calor humano, que passava das quatro velhas senhoras para a audiência em seu redor.
- E já me sabe dar a resposta à minha pergunta meu caro jovem? - perguntou Beatriz ao empregado de mesa.
- Não. Acho que vou mesmo precisar de mais algum tempo...
- Temos todo o tempo do mundo meu querido. E ainda lhe falta ouvir a minha história... - respondeu-lhe Inês com um sorriso misterioso.

(continua)