segunda-feira, 4 de junho de 2012

"Somos todos um"

Sabemos que há algo muito acima de nós quando vemos as nossas vidas por um fio e, de repente, há alguma coisa que nos puxa de volta e nos coloca de novo nos eixos.
É algo que se assemelha ao despiste de um carro que vai embater contra o tronco que se avizinha bem à nossa frente, mas de repente há algo que nos trava desse embate bem no último momento.
E aí temos duas opções: ou nos vitimizamos, ou aproveitamos para pensar e reflectir.
Eu escolhi a segunda opção.

***

Havia uma voz na minha cabeça. Essa voz dizia-me que este dia não ia ser igual aos outros, que, de alguma forma, estava destinado a ser diferente.
Andara com esta sensação estranha desde que me levantara da cama, mas  achava que era loucura da minha cabeça. Pela enésima vez consultei a minha agenda, como se o pensamento na minha mente conseguisse formar por magia um compromisso tão extraordinário, que explicaria tal pensamento. Mas uma vez mais constatei que nada acontecia. Tal como nada lá estava.
Tinha a agenda vazia. Nada de compromissos de trabalho, nada de vida social.
Reflecti um pouco sobre isto. Era de facto um dia diferente, já que em todos os outros dias da minha vida, tinha sempre a agenda cheia e uma data de mensagens no telemóvel para responder.
Na realidade, eram quase todos contactos de trabalho. Pouco tempo me restava para a vida social e esta constatação fez-me abrir a agenda na página dos contactos.
“Trabalho, trabalho, trabalho…”
Todos os números lá registados era contactos profissionais, alguns dos quais de pessoas que nunca tinha visto pessoalmente.
Bem, certamente teria alguma coisa pessoal na agenda do telemóvel. Mas não, na verdade não tinha.
Busquei em todos os recantos da minha memória, tentando recordar todos os nomes que faziam parte da minha infância e da minha adolescência, mas foi com muito custo que consegui fazê-lo. A lista que começara a rabiscar no papel continuava demasiado curta. Passei para os nomes das pessoas que conhecera na universidade. Certamente que me recordaria de mais, já que não se haviam passado assim tantos anos. Mas ainda assim, a lista continuava reduzida.
Parecia que me encontrava numa redoma de vidro, num casulo que me separava de tudo e de todos à minha volta e que me impedia de ver os outros, mas sobretudo de ser vista.
Olhei pela janela, mas a vista que tanto amava desapareceu por completo dos meus olhos. Era como se, de repente, se tivesse feito noite sobre o Tejo e a cidade ficasse imersa no mais escuro breu de todos os tempos.
“Caramba, terei ficado cega?”
Mas não. Como se alguém subitamente tivesse ligado o interruptor da luz, senti-me completamente encandeada e a cegueira passou por completo, como se a aurora de um novo dia raiasse no horizonte, mesmo à frente dos meus olhos.
“Mas o que raio está a acontecer comigo? Se não fiquei cega, fiquei louca, só pode!”
A luz à minha volta ficou normal e de novo me vi sentada na cadeira do escritório a olhar pela janela.
E então, foi como se de repente uma descarga eléctrica percorresse o meu corpo e me acordasse para a vida.
“Porra, estar sozinha não tem piada. É como ter um tesouro enorme e não partilhar uma única moeda com o mendigo que nos pede ajuda para comer!”
É que uma coisa é gostarmos de um pouco de solidão, de preservarmos a nossa independência. Outra coisa é isolarmo-nos do mundo e dos outros. Perdermos as experiências, as trocas, a divindade que há em cada um de nós. Perdermos a oportunidade de nos darmos aos outros. Perdermos a amizade e, sobretudo o Amor.
Levantei-me num ápice e comecei a abrir as gavetas da secretária, uma a uma, retirando de lá todos os papéis.
“Que se lixe a arrumação! Onde está? Onde está?!”
Deixei-me cair no chão, chorando e sentindo-me no mais absoluto desespero, até que de repente, bem na minha frente, espreitando de dentro de um grande envelope cor-de-rosa, apareceu o que procurava.
“A minha agenda antiga! Está aqui, encontrei-a! Obrigada meu Deus.”
Segurei-a junto ao peito, fechei os olhos, inspirando profundamente num alívio absoluto e, pela primeira vez nessa manhã, senti o ar a inundar os meus pulmões. Folheei as suas páginas e ali estavam todos os nomes de todas as pessoas com quem me cruzara ao longo da minha vida. A caligrafia era a minha, e podiam ver-se as sucessivas alterações nos números de telefone e nas moradas ao longo dos anos. Curioso, porque algumas delas já nem me lembrava de as ter anotado.
Sorri ao ser inundada com as recordações de cada um dos nomes. Com a forma com que cada um deles tocara a minha vida e nesse exacto momento tomei uma resolução: não voltaria a isolar-me. Não voltaria a usar o trabalho e a independência para me enfiar de novo num casulo. O Ser Humano não foi feito para ficar só. E eu não queria voltar a estar só.
Peguei no telefone para ligar à minha amiga mais antiga, aquela que fizera da minha infância uma época de delícias e foi então que tudo aconteceu.
De novo a minha visão se obscureceu e logo em seguida se encandeou com a claridade à minha volta. Sentia o meu corpo enfraquecido, mas ao mesmo tempo nunca estivera tão viva. Conseguia sentir tudo e todos ao meu redor, como se os nossos corações batessem em uníssono e os nossos pulmões respirassem ao mesmo ritmo. Conseguia cheirar todas as flores, ouvir o restolhar de todos os ramos e de todas as folhas no meio do chão.
Os meus ouvidos foram inundados de som. E, apesar de alguns barulhos mais estridentes, foi como se ao longe ouvisse uma voz melodiosa a cantar uma canção de boas-vindas.
“Consegue ouvir-me?” – perguntava uma voz insistentemente junto ao meu ouvido.
Abri os olhos e passei a mão pela cabeça, no sítio onde uma dor latejante se insinuara. Olhei para o rosto ali tão próximo do meu e respondi, surpreendentemente com uma voz mais audível do que pensara ser possível. Audível e calma.
“Melhor do que isso!” – disse-lhe com um sorriso.
Os seus olhos, de um verde tão profundo como as folhas da floresta à minha volta, iluminaram-se e sorriram de volta, embora o seu rosto me fizesse uma pergunta muda, como se as minhas palavras o tivessem deixado confuso.
“Consigo fazer mais do que ouvi-lo. Consigo escutá-lo. Consigo sentir tudo o que me rodeia! E isso faz toda a diferença.”
Ao perceber o significado das minhas palavras, a sua face iluminou-se tanto como o seu olhar e apertou-me a mão, um pouco comovido.
Olhei em redor e percebi que, naquele local onde o meu carro resvalara da estrada, se tinha juntado uma data de gente que não me conhecia de lado nenhum, só para me ajudar. E o paramédico que me socorria e me sorria de volta era um deles.
“Acho que isto lhe pertence. Pelo menos era o que segurava na mão quando a encontrámos.” – disse-me, entregando-me a minha agenda antiga.
Fiquei abismada com o que os meus olhos viam. Não mexia naquela agenda havia anos e tinha a certeza de que estava guardada num canto recôndito de uma gaveta qualquer! Como é que tinha ali aparecido? Nas minhas mãos, tinha dito ele?
“Faça-me um favor. Escreva aí o seu nome. E o de toda a gente que parou para me ajudar. Quero agradecer a todos mais tarde.”
Ele sorriu novamente e fez o que lhe pedira sem hesitar. Todas as pessoas ali presentes lhe deram o nome e contacto sem sequer questionarem o porquê do meu pedido. E isso fez o meu coração bater mais forte.
Se queria um milagre na minha vida, então Deus escreveu certo por linhas tortas.
Demonstrou-me que a sua mão está presente em tudo e todos à nossa volta e que o Ser Humano ainda é capaz de olhar à sua volta e estender a mão para ajudar o próximo.
Demonstrou-me que, sobretudo nas horas da mais pura aflição, funcionamos em rede. Todos em conjunto, na mais absoluta conexão. E é nestes momentos que os milagres ocorrem.
Somos todos um.