Sabemos que há algo muito acima de nós quando vemos as nossas vidas por
um fio e, de repente, há alguma coisa que nos puxa de volta e nos coloca de
novo nos eixos.
É algo que se assemelha ao despiste de um carro que vai embater contra
o tronco que se avizinha bem à nossa frente, mas de repente há algo que nos
trava desse embate bem no último momento.
E aí temos duas opções: ou nos vitimizamos, ou aproveitamos para pensar
e reflectir.
Eu escolhi a segunda opção.
***
Havia uma voz na minha cabeça.
Essa voz dizia-me que este dia não ia ser igual aos outros, que, de alguma
forma, estava destinado a ser diferente.
Andara com esta sensação estranha
desde que me levantara da cama, mas
achava que era loucura da minha cabeça. Pela enésima vez consultei a
minha agenda, como se o pensamento na minha mente conseguisse formar por magia
um compromisso tão extraordinário, que explicaria tal pensamento. Mas uma vez
mais constatei que nada acontecia. Tal como nada lá estava.
Tinha a agenda vazia. Nada de
compromissos de trabalho, nada de vida social.
Reflecti um pouco sobre isto. Era
de facto um dia diferente, já que em todos os outros dias da minha vida, tinha
sempre a agenda cheia e uma data de mensagens no telemóvel para responder.
Na realidade, eram quase todos
contactos de trabalho. Pouco tempo me restava para a vida social e esta
constatação fez-me abrir a agenda na página dos contactos.
“Trabalho, trabalho, trabalho…”
Todos os números lá registados
era contactos profissionais, alguns dos quais de pessoas que nunca tinha visto
pessoalmente.
Bem, certamente teria alguma
coisa pessoal na agenda do telemóvel. Mas não, na verdade não tinha.
Busquei em todos os recantos da
minha memória, tentando recordar todos os nomes que faziam parte da minha
infância e da minha adolescência, mas foi com muito custo que consegui fazê-lo.
A lista que começara a rabiscar no papel continuava demasiado curta. Passei
para os nomes das pessoas que conhecera na universidade. Certamente que me
recordaria de mais, já que não se haviam passado assim tantos anos. Mas ainda
assim, a lista continuava reduzida.
Parecia que me encontrava numa
redoma de vidro, num casulo que me separava de tudo e de todos à minha volta e
que me impedia de ver os outros, mas sobretudo de ser vista.
Olhei pela janela, mas a vista
que tanto amava desapareceu por completo dos meus olhos. Era como se, de
repente, se tivesse feito noite sobre o Tejo e a cidade ficasse imersa no mais
escuro breu de todos os tempos.
“Caramba, terei ficado cega?”
Mas não. Como se alguém
subitamente tivesse ligado o interruptor da luz, senti-me completamente
encandeada e a cegueira passou por completo, como se a aurora de um novo dia
raiasse no horizonte, mesmo à frente dos meus olhos.
“Mas o que raio está a acontecer
comigo? Se não fiquei cega, fiquei louca, só pode!”
A luz à minha volta ficou normal
e de novo me vi sentada na cadeira do escritório a olhar pela janela.
E então, foi como se de repente
uma descarga eléctrica percorresse o meu corpo e me acordasse para a vida.
“Porra, estar sozinha não tem
piada. É como ter um tesouro enorme e não partilhar uma única moeda com o
mendigo que nos pede ajuda para comer!”
É que uma coisa é gostarmos de um
pouco de solidão, de preservarmos a nossa independência. Outra coisa é
isolarmo-nos do mundo e dos outros. Perdermos as experiências, as trocas, a
divindade que há em cada um de nós. Perdermos a oportunidade de nos darmos aos
outros. Perdermos a amizade e, sobretudo o Amor.
Levantei-me num ápice e comecei a
abrir as gavetas da secretária, uma a uma, retirando de lá todos os papéis.
“Que se lixe a arrumação! Onde
está? Onde está?!”
Deixei-me cair no chão, chorando
e sentindo-me no mais absoluto desespero, até que de repente, bem na minha
frente, espreitando de dentro de um grande envelope cor-de-rosa, apareceu o que
procurava.
“A minha agenda antiga! Está
aqui, encontrei-a! Obrigada meu Deus.”
Segurei-a junto ao peito, fechei
os olhos, inspirando profundamente num alívio absoluto e, pela primeira vez
nessa manhã, senti o ar a inundar os meus pulmões. Folheei as suas páginas e
ali estavam todos os nomes de todas as pessoas com quem me cruzara ao longo da
minha vida. A caligrafia era a minha, e podiam ver-se as sucessivas alterações
nos números de telefone e nas moradas ao longo dos anos. Curioso, porque algumas
delas já nem me lembrava de as ter anotado.
Sorri ao ser inundada com as
recordações de cada um dos nomes. Com a forma com que cada um deles tocara a
minha vida e nesse exacto momento tomei uma resolução: não voltaria a
isolar-me. Não voltaria a usar o trabalho e a independência para me enfiar de
novo num casulo. O Ser Humano não foi feito para ficar só. E eu não queria
voltar a estar só.
Peguei no telefone para ligar à
minha amiga mais antiga, aquela que fizera da minha infância uma época de
delícias e foi então que tudo aconteceu.
De novo a minha visão se
obscureceu e logo em seguida se encandeou com a claridade à minha volta. Sentia
o meu corpo enfraquecido, mas ao mesmo tempo nunca estivera tão viva. Conseguia
sentir tudo e todos ao meu redor, como se os nossos corações batessem em
uníssono e os nossos pulmões respirassem ao mesmo ritmo. Conseguia cheirar
todas as flores, ouvir o restolhar de todos os ramos e de todas as folhas no
meio do chão.
Os meus ouvidos foram inundados de
som. E, apesar de alguns barulhos mais estridentes, foi como se ao longe
ouvisse uma voz melodiosa a cantar uma canção de boas-vindas.
“Consegue ouvir-me?” – perguntava
uma voz insistentemente junto ao meu ouvido.
Abri os olhos e passei a mão pela
cabeça, no sítio onde uma dor latejante se insinuara. Olhei para o rosto ali
tão próximo do meu e respondi, surpreendentemente com uma voz mais audível do
que pensara ser possível. Audível e calma.
“Melhor do que isso!” – disse-lhe
com um sorriso.
Os seus olhos, de um verde tão
profundo como as folhas da floresta à minha volta, iluminaram-se e sorriram de
volta, embora o seu rosto me fizesse uma pergunta muda, como se as minhas
palavras o tivessem deixado confuso.
“Consigo fazer mais do que
ouvi-lo. Consigo escutá-lo. Consigo
sentir tudo o que me rodeia! E isso faz toda a diferença.”
Ao perceber o significado das
minhas palavras, a sua face iluminou-se tanto como o seu olhar e apertou-me a
mão, um pouco comovido.
Olhei em redor e percebi que,
naquele local onde o meu carro resvalara da estrada, se tinha juntado uma data
de gente que não me conhecia de lado nenhum, só para me ajudar. E o paramédico
que me socorria e me sorria de volta era um deles.
“Acho que isto lhe pertence. Pelo
menos era o que segurava na mão quando a encontrámos.” – disse-me,
entregando-me a minha agenda antiga.
Fiquei abismada com o que os meus
olhos viam. Não mexia naquela agenda havia anos e tinha a certeza de que estava
guardada num canto recôndito de uma gaveta qualquer! Como é que tinha ali
aparecido? Nas minhas mãos, tinha dito ele?
“Faça-me um favor. Escreva aí o
seu nome. E o de toda a gente que parou para me ajudar. Quero agradecer a todos
mais tarde.”
Ele sorriu novamente e fez o que
lhe pedira sem hesitar. Todas as pessoas ali presentes lhe deram o nome e
contacto sem sequer questionarem o porquê do meu pedido. E isso fez o meu
coração bater mais forte.
Se queria um milagre na minha
vida, então Deus escreveu certo por linhas tortas.
Demonstrou-me que a sua mão está
presente em tudo e todos à nossa volta e que o Ser Humano ainda é capaz de
olhar à sua volta e estender a mão para ajudar o próximo.
Demonstrou-me que, sobretudo nas
horas da mais pura aflição, funcionamos em rede. Todos em conjunto, na mais
absoluta conexão. E é nestes momentos que os milagres ocorrem.
Somos todos um.