domingo, 29 de janeiro de 2012

Uma vida oculta

Maria era uma mulher de meia idade, como a maior parte das mulheres de meia idade são. A sua beleza já não era mais a mesma, o corpo estava ligeiramente deformado e a paciência arrumada por uma existência algo infeliz.
Ela era uma senhora. Oriunda de uma família de fazendeiros angolanos, donos de fazendas e matagais a perder de vista, viu-se de repente sem nada no período do pós-guerra e teve que refazer a sua vida noutro país. Adorava bordar, cozinhar e outros louvores femininos, coisas que fazia particularmente bem, mas a sua vida nunca fora abençoada pela maternidade.
Tímida e calada nas reuniões familiares, ninguém sabia ao certo quem ela era, porque o seu comportamento de senhora ainda tinha o pudor de outrora.
Diz quem os conhecia que era o oposto do marido. José também era oriundo de uma família de agricultores, mas a sua educação não chegava aos calcanhares da de sua mulher. Rude, teimoso e machista, era o protótipo de um Portugal ainda rural de há 30 anos atrás.
Maria morreu do mesmo modo como viveu: de uma forma calma. Um dia estava a dormir e não mais acordou.
O marido tratou dos trâmites do funeral. Maria fora uma boa esposa e ele queria dar-lhe tudo o que ela merecia. Apesar de não gostar de gastar muito dinheiro, José não tinha coragem de negar à sua esposa todas as regalias da sua última morada. Para além de ter medo que a sua alma o perseguisse, tinha também medo das más linguas da vizinhança.
Mas quando se tratou de arrumar os trapinhos da sua esposa, pois ele não era homem de guardar muitas recordações, muito menos de um defunto, chamou as suas sobrinhas, duas jovens mulhers que por certo teriam mais jeito do que ele para aquelas tarefas de mulher.
As duas lá foram, um pouco atrapalhadas por sentirem que nunca tinham conhecido bem aquela tia calada e tímida. Começaram pela roupa que estava pendurada no roupeiro e depois passaram às gavetas. No fundo de uma das gavetas estava uma chave, que as jovens não sabiam de onde seria.
Mais tarde, ao tentarem abrir uma das pequenas portas da parte de cima do armário, verificaram que esta estava fechada. Lembrando-se da chave encontrada, experimentaram-na na dita porta e esta abriu-se.
Ficaram atónitas ao verem vários caderninhos, todos eles escritos com a letra aprumadinha da sua tia. Eram os seus diários, algo que ela tinha mantido em segredo durante toda a sua vida.
O armário tinha ainda pilhas de cartas, algumas ainda contendo o perfume de uma paixão certamente adormecida pelos anos.
As duas jovens deixaram as pilhas de roupa em cima da cama e embrenharam-se numa viagem no tempo, que as levou até a uma Àfrica desconhecida e apaixonante. Numa só tarde, viveram amores e desamores, as coscuvilhices de uma sociedade coquette e uma tórrida paixão por um soldado português em tempo de guerra.
Quando o tio chegou a casa encontrou as duas jovens sentadas na cama lavadas em lágrimas.
"O que estão vocês a ler?" - perguntou, curioso.
"Só uns livros de receitas que a tia guardava. Ficámos emocionadas, só isso." - respondeu uma das sobrinhas.
"Coitadinhas" - disse José - "Gostavam muito da tia não era? Se vos custar muito esta tarefa, eu peço à mana Josefa."
"Não!" - responderam em coro.
"Tio, será que podemos ficar com estes livros da tia?" - perguntou uma das sobrinhas.
"Sim, claro, para que é que eu preciso de livros de receitas. Ainda está para chegar o dia em que vão ver-me no fogão!" - respondeu o tio virando as costas em seguida.
As sobrinhas acenaram com a cabeça, em sinal de concordância e em seguida voltaram para o mundo dos sonhos: dos bailes da sociedade, dos encontros no meio das plantações de café e das noites de paixão escaldante nos braços de um soldado que não se chamava José.

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