domingo, 29 de janeiro de 2012

Suck it up!

Raquel trabalhava sozinha o dia todo. A manutenção do seu negócio exigia que tivesse um espaço calmo, onde lhe fosse prmitido pensar e dar asas à sua imaginação, mas também uma bancada de trabalho, onde podia fazer trabalho mais prático.
Era conhecida no país todo. Ou melhor, o seu nome era conhecido por todo o país, embora ninguém soubesse na realidade quem era a mulher por detrás do que saía daquele espaço.
A sua vida era preenchida pelo trabalho durante o dia e pela família durante a noite. Embora fosse perfeitamente feliz com o marido, após 15 anos de casamento a chama da paixão tinha-se apagado. Não sabia se havia culpas a atribuir, ou se o cansaço da rotina causava este esmorecimento com toda a gente.
Já tinha assisitdo a divórcios de alguns casais amigos, mas o seu casamento continuava sólido como uma rocha. O marido tratava-a como uma princesa e tinha dois filhos extraordinários, já a entrar na fase da pré-adolescência, pelo que achava que não tinha razões para se divorciar como as suas amigas.
Mas aos 35 anos Raquel sentia-se insatisfeita. Queria mais da vida. Não era dinheiro que lhe faltava, tinha todo o conforto material possível e imaginário, mas o vazio era emocional, era a sensação de sentir-se desejada, algo que o marido não lhe transmitia. Faziam amor, claro, mas era como se fosse uma rotina, um hábito adquirido, mais uma tarefa na sua lista diária de compromissos na agenda. Até os horários se tinham tornado previsíveis e Raquel estava a ficar farta.
Até que um dia a sua rotina mudou.
Um dos estafetas da empresas de transporte que usava habitualmente para fazer envios para os seus clientes entrou na sua sala de trabalho como era normal. Apesar de já trabalhar com ele há mais de um ano, nunca tinham trocado muito mais do que o cumprimento da praxe. Eventualmente dois dedos de conversa superficial, mas não havia a mínima confiança.
Raquel deu consigo a olhar para ele e a perceber que só nesse dia realmente o viu. Não era um homem de capa de revista, mas era tinha uma beleza interessante: não muito alto - apenas o suficiente para se poder aninhar nele e sentir-se protegida - olhos castanhos claros, um nariz fino e proeminente no tamanho certo para não ser demasiado grande, lábios finos mas carnudos. Desejou beijá-los e saborear o gosto da sua lingua. Desejou passar-lhe as mãos pelos cabelos escuros e inspirar o aroma másculo da sua pele.
Sentiu o ar a estalar debaixo dos dedos e acordou da visão que tinha acabado de ter. Reparou que ele a olhava com interesse enquanto franzia o sobrolho.
- Desculpe, perdi-me num pensamento. O que estava a dizer?- Perguntava se já tem a guia de transporte preenchida.- Claro, só falta você assinar. Está aqui em cima.
Ambos estenderam a mão ao mesmo tempo para o pedaço de papel em cima da bancada e as suas mãos tocaram-se levemente. Houve uma descarga eléctrica entre os dois e de repente, sem que nenhum deles soubesse como, já se beijavam sofregamente. O beijo foi tudo o que ela imaginara e muito mais. Começou sem que soubessem como nem porquê, mas depois passou a ser menos intenso, mas mais sensual, quase terno até.
Quando conseguiram separar-se, olharam um para o outro completamente horrorizados com o que tinham acabado de fazer.
- Desculpe D. Raquel! Eu nem sei como isto foi acontecer!
Ele estava visivelmente atrapalhado. O tom de voz era de quem estava até horrorizado.
- Deixe estar Sr. Ricardo, você não tem culpa de nada. Acho que nenhum de nós os dois percebeu muito bem como é que isto aconteceu no inicio. - respondeu, ainda meio atordoada e ofegante.
Os seus corpos ainda recuperavam do embate de energia, mas apesar de tudo Raquel conseguia ser um pouco mais racional do que ele.
- Diz bem, no início! Mas depois eu gostei e continuei, mesmo consciente de que o que estava a fazer era errado!- E julga que o sentimento não foi mútuo? Se eu não tivesse correspondido minimamente ou se não tivesse querido que você continuasse, pode ter a certeza que nunca se teria prolongado esta siuação.- Meu Deus, eu volto a pedir desculpa. - ele encostou-se à bancada de trabalho com a cabeça entre as mãos. - Eu nem sei por onde hei-de começar para compôr a asneira que acabei de fazer.- Você conhece a expressão inglesa "suck it up"?Ele assentiu afirmativamente com a cabeça.- Então já sabe o que fazer: aguente-se à bronca. Somos os dois adultos e nenhum de nós é inocente. Aconteceu. Aguente-se que eu também.Raquel reparou no pormenor da aliança no dedo anelar esquerdo, algo que nunca lhe tinha chamado à atenção anteriormente. Hoje parecia que aquele anel tinha luzes de néon embutidas.- Você também é casado?- Sou e juro que nunca me tinha acontecido nada disto até hoje! Nunca toquei noutra mulher!- Eu acredito que sim, porque também eu nunca tinha beijado outro homem desde que casei!No meio de toda a confusão que sentiam, ele conseguiu olhar para ela e sorrir, tentando aliviar a tensão.- Apesar de tudo, deviamos sentir-nos lisonjeados. Conseguimos fazer um ao outro em dois minutos o que algumas pessoas ao longo dos anos não fizeram.- É verdade. - ela sorriu de volta indo encostar-se ao lado dele na bancada.Era uma tentativa mútua de aligeirar o clima tenso e incómodo que se instalara.- Ainda assim não voltará a repetir-se, prometo! - disse-me com convicção, enquanto agarrava na guia e a assinava, preparando-se para ir embora.- Está bem. Va-se lá embora e cuide bem da minha encomenda. Até à próxima.Ele avançou até à porta mas ainda antes de sair voltou-se para trás tão repentinamente que quase esbarrou nela, que o seguia de perto. Sentiram-se novas faíscas no ar e acharam prudente que cada um desse um passo atrás.- Vais conseguir ficar bem contigo e com o teu marido? - perguntou ele, olhando-a intensamente e usando um tom de voz que deixou trespassar alguma intimidade. Também não lhe passou despercebido o facto de a ter começado a tratar por "tu".- Vou. Vou ficar bem, acho. O problema serei eu e não com o meu marido. Ele nada tem a ver com o que se passou. E tu? - ela levantou os olhos para ele e a intensidade do olhar dele forçou-a a manter o olhar.- Vou ficar com um peso na consciência, mas no fundo sinto o mesmo que tu.Passou-lhe a mão pela face em jeito de despedida e foi-se embora com a embalagem que tinha vindo buscar.Ele saiu e durante muito tempo aquele beijo não saiu da cabeça de Raquel. Pela primeira vez em anos sentira-se viva.
O tempo foi passando e ele continuou a vir fazer as recolhas das encomendas que Raquel expedia para os seus clientes. Depois de terem superado o constrangimento inicial, conseguiram começar a falar cada vez mais e mais, cimentando as bases de uma forte amizade.Quando ele estava com pressa, não se demorava e nenhum gostava quando isso acontecia. Geralmente, ele reservava sempre meia hora para estar com ela e ela guardava aquele tempo para conseguir fazer uma pequena pausa ao longo do dia. Sentavam-se lado a lado, numa pose descontraída, bebendo um chá ou um café. Contavam um ao outro algumas das suas peripécias. Com o tempo começaram a fazer alguns desabafos. As conversas foram-se tornando intimistas e chegou uma altura em que já nenhum dos dois precisava de falar para adivinhar o estado de espírito do outro.
Os seus casamentos continuavam de pé e aparentemente felizes, mas ambos sabiam que já não conseguiam viver sem se verem todos os dias. Mesmo quando não tinha encomendas para enviar, ele passava por lá simplesmente para cumprimentá-la.
Nunca mais se tinham beijado, mas jamais tinham conseguido deixar de se continuar a tocar. Depois do constrangimento inicial e enquanto cimentavam amizades, Raquel e Ricardo passaram do toque casual à carícia intencional. Às vezes passavam todo o tempo de mão dada. Um dia em que ele estava na mó de baixo e passou simplesmente para desabafar, acabaram os dois sentados no chão, num recanto da sala, com ele aninhado nos seus braços em busca de conforto.
Passaram cinco anos desde o beijo. Todos os anos ele vinha com uma rosa branca nessa data e todos os anos acrescentava uma rosa, como símbolo da contagem dos anos.
Este ano não era excepção. Mas havia alguma coisa na sua expressão que estava diferente.
- O que é que se passa? - perguntou ela.
- Feliz aniversário! - respondeu ele, avançando para ela, abraçando-a com força.
Raquel correspondeu ao abraço e sucumbiu à ternura que este continha.
- Ricardo, o que se passa? - repetiu.
- Não me vais desejar um feliz aniversário? - em vez de lhe dizer o que ela queria saber, ele respondeu com uma pergunta.
- Só depois de me dizeres o que se passa contigo.
Ela afastou-se para olhá-lo nos olhos e assustou-se com o que viu. Um fogo tão intenso, uma luz tão forte, que não teve dúvidas sobre o que se passava com ele.
- Eu digo-te o que se passa.
E puxou-a para si, agarrando-a pela nuca. O beijo que se seguiu foi forte e intenso e libertou cinco anos de carinho e desejo acumulado.
- Ricardo, tinhamos concordado que a nossa relação nunca iria passar para este nível. Não podemos!
- Lembras-te do que me disseste há cinco anos atrás? Suck it up! Os nossos conjuges andam enrolados um com o outro. Não é curioso?
Ela deu dois passos atrás sem poder acreditar no que ele lhe estava a dizer.
- O quê?!
- Aparentemente a minha fiel esposa desconfiou que eu andava com alguém e mandou fazer umas investigações. É claro que nunca lhe entregaram nada de concreto porque nunca aconteceu nada entre nós, mas foi o suficiente para ela ir ter com o teu marido e apresentar as suas conclusões. Ela confrontou-me com isso ontem à noite e eu finalmente admiti aquilo que sabia dentro de mim há cinco anos. Só que as coisas entre eles foram também evoluindo e tornaram-se bastante quentes.
- Não posso acreditar. O meu marido e a tua mulher?
- Mas podes mesmo acreditar Raquel. Eu apanhei-os em flagrante! Na minha casa! Hoje!
- O quê?
- Cheguei a casa mais cedo porque queria tomar banho e preparar-me para vir ter contigo. Como podes ver, não o fiz, pois ainda estou com a minha farda de trabalho e a cheirar a cavalo, nada do que tinha planeado para ti.
Ela teve que sentar-se no chão pois corria o risco de cair a qualquer momento.
- Sabes o que é mais curioso? É que não me importei mesmo nada! - continuou ele.
Raquel tentou analisar o que sentia. Na realidade, também ela não sentia raiva nem tristeza dentro dela. Nem tão pouco uma pontada de ciume, o que era estranho, pois de cada vez que pensava em Ricardo e como seria quando ele estava com a mulher dele, quase se roía toda.
Olhou para ele e riu às gargalhadas.
- E o que fizeste quando os apanhaste?
Encolheu os ombros e sentou-se no chão ao meu lado, entrelaçando a sua mão na minha.
- Nada.
Raquel olhou para ele com espanto.
- Como nada?
- Mentira. Passei na florista para te comprar as rosas. E depois vim para cá. Foi o que fiz.
- E eles?
- Eles não importam Raquel, não me ralo mesmo nada! Eles não fizeram mais do que apaixonar-se, o que no fundo foi o que nos aconteceu. Mas temos a nossa consciência tranquila porque nunca mais nos tocámos e ali não houve essa consideração. Magoa-me apenas o facto de termos deixado arrastar esta situação durante tanto tempo. Os quatro.
- Oh céus! E agora? O que vamos fazer?
- Primeiro vamos divorciar-nos. Acho que não faz sentido continuarmos a viver mais tempo assim.
- Concordo.
- E depois vamos casar-nos. Nós os dois. Tu e eu.
- Vamos?
- Vamos.
Raquel olhou para ele e sorriu. Ele preenchia-a de todas as formas que o marido nunca conseguira, apesar de a tratar como uma princesa. A comunicação, a linguagem corporal, os gostos, o facto de conseguirem expressar os sentimentos em voz alta. Não tinha a mais pequena dúvida de que daria certo.
- Só tenho uma condição a impôr.
Ele olhou para ela e sorriu. Antes mesmo de ela lhe dizer o que era, já ele lhe respondia.
- Nem penses que vou esperar até ao casamento!
E Raquel viu-se tomada de assalto ali mesmo, no chão da sua sala de trabalho, o seu refúgio durante cinco anos e sentiu uma felicidade enorme.
A partir de agora o vazio estava preenchido por completo.

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