quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Quatro dentaduras e um copo de vinho: parte 4 - "Remédio Santo! - Madalena"

(continuação)

Marta fechou os olhos ainda com um sorriso ao canto da boca, fruto da recordação da história mais marcante da sua vida. Inspirou o cheiro da maresia a apreciou o espectáculo magnífico proporcionado pelo pôr-do-sol.
- A Francisca teria apreciado isto. Ela adorava a praia, principalmente ao entardecer. Espero que, onde quer que esteja, ainda seja possível continuar a apreciar o pôr-do-sol...
A senhora que se chamava Inês acariciou-lhe o braço e nenhuma delas conseguiu proferir qualquer palavra durante alguns momentos.
O empregado de mesa tinha ido servir mais um pequeno grupo de amigos que entretanto tinha chegado.
- Olhe lá, porque raio está um copo naquela mesa com seis dentaduras lá dentro? - perguntou-lhe baixinho um dos membros desse grupo, cheio de curiosidade. 
- É uma longa história. - respondeu ele sorrindo. - E agora, se me dão licença, vou acabar de ouvi-la...
O empregado regressou à mesa das quatro senhoras, que tinham entretanto retomado a conversa e voltou a sentar-se. Reparou que o grupo que tinha acabado de servir tinha ficado de olho na mesa das senhoras, tal como o resto dos clientes que se encontravam na esplanada.
- Ora. onde íamos nós? - perguntou-lhes.
- A Marta já terminou as suas desventuras com o Alberto. Resta apenas dizer que não ficou muito mais tempo na sua vila natal. Pediu guarida à tia até arranjar o seu próprio canto, fez as malas e bateu com a porta à mente tacanha dos seus conterrâneos.
- E foi o melhor que pude fazer! Arranjei um trabalho em Lisboa e resolvi que não ia mais ter que depender de ninguém para garantir a minha própria subsistência. Por isso não voltei a querer relações que envolvessem morar junto. Descompliquei a minha vida, porque os casamentos dão trabalho meu jovem, e tenho sido extremamente feliz assim.
- Bem, acho que posso contar a minha parte da história. - respondeu a senhora que se chamava Madalena.
Todas sem excepção riram baixinho.
- Oh, e que bela história é a tua minha querida... - disse-lhe a sua amiga Inês com um tom sarcástico.
O empregado chegou-se mais para a frente, pronto para ouvi-la e para mergulhar num mundo completamente diferente.
A senhora que se chamava Madalena bebeu mais um pouco de vinho antes de começar a contar a sua história. Pousou lentamente o copo sobre a mesa e começou então a falar.
- Terminei o curso e voltei para a minha cidade natal. O meu pai conhecia o director do jornal local e arranjou-me lá emprego. Mas apesar das minhas boa notas no curso de jornalismo, nunca me permitiu escrever uma só linha para que fosse publicada. O máximo que me era permitido escrever eram as suas cartas e missivas, já que a designação profissional de "assistente de direcção" era o equivalente a "secretária com um misto de empregada doméstica".
Mas os tempos não era ainda muito fáceis no mundo laboral para as mulheres. Os nossos salários eram um pouco inferiores, apesar de já então sermos mais competentes do que muitos dos nossos colegas.
- Ámen a isso também minha querida! - brindou a amiga Inês.
- Houve um dia em que, após as festas de Carnaval da cidade, um dos meus colegas que fazia reportagens de rua, faltou ao trabalho. Tinha ido cobrir o desfile e, aparentemente, tinha celebrado com demasiado entusiasmo.
Em desespero de causa, o director pediu-me para que escrevesse então a reportagem sobre esta matéria, já que eu tinha sido a única a estar presente no local, e que não tinha outra matéria qualquer em mãos.
Agarrei a oportunidade com unhas e dentes, pensando que era a oportunidade de entrar no mundo do jornalismo "a sério" e escrevi uma matéria fantástica. No dia em que foi publicada no jornal, corri de manhã a mostrar o artigo ao meu pai e ia desmaiando quando vi que o artigo estava assinado pelo jornalista que não tinha comparecido ao trabalho naquele dia para o escrever.
O meu pai era um homem fantástico, com uma mente muito avançada para a altura em que viveu. E apesar de ser amigo do director, não gostou nem um pouco do que ele me fez.
Arregaçou as mangas e pôs-se a percorrer todos os seus contactos para ver se me conseguia emprego noutra redacção qualquer, mas sem sucesso. Já mais calma, falei com ele e disse-lhe que não tinha assim tanta importância e voltei ao meu posto de trabalho como era habitual.
Mas não me esqueci do que me tinham feito. O meu colega veio falar comigo, deu-me umas palmadinhas de agradecimento nas costas e voltou para o seu lugar. O director chamou-me e explicou-me que aquela coluna tinha sido sempre daquele colega e blá. blá, blá, não ouvi nem metade do que me disse então.
Eu tinha uma rapariga minha amiga de infância que trabalhava no refeitório da redacção do jornal. Tinhamos andado juntas na escola e também ela tinha ouvido falar do que me tinham feito e não tinha ficado nem um pouco satisfeita. E pelo que tinha ouvido das poucas colegas jornalistas que ali trabalhavam, elas também não.
Um dia, depois do trabalho, juntámo-nos  todas e elaboramos um plano maquiavélico...
- E até hoje não acredito como foram capazes de executá-lo! - interrompeu-a Marta.
Madalena riu-se baixinho até as lágrimas lhe começarem a escorrer pelo rosto.
- Se queres saber, eu também não, mas a nossa juventude dá-nos o privilégio da inconsequência e nos anos 70 não havia qualquer preocupação com a saúde...
- Mas afinal o que é que vocês aprontaram? - perguntou o senhor que estava sentado ao lado do cavalheiro dos olhos azuis.
- A minha mãe tinha um remédio fantástico que desde miúda a vira preparar para dar ao meu pai, para o tratar da sua prisão de ventre crónica. A dose certa fazia o intestino funcionar. Uma gota a mais e era vê-lo a correr para a casa de banho em grande aflição. Era algo eficaz mas que exigia um certo cuidado.
Uma das colegas fez anos na semana a seguir e comprámos uma garrafa de espumante para celebrar ao final do dia na redacção. O director abriu a garrafa e passou-a à Bernardete para que servisse o espumante nos copos. Estavam todos distraídos com o bolo de aniversário que a aniversariante distribuía e eu fui ajudar a Bernardete com o espumante, passando os copos a todos os colegas.
Foi uma celebração e pêras e foi toda a gente feliz e contente para casa. As mulheres mais do que os homens e não, meu caro, tamanha alegria não se devia ao álcool no sangue...
O empregado olhou para ela, com ar incrédulo e abriu muito a boca com ar de espanto, enquanto era atingido pelo evidente desfecho da história.
- Suas diabretas, deram laxante ao director do jornal?
Madalena sorriu abertamente, com um brilho travesso no olhar.
- E a todos os colegas machos da redacção!
A gargalhada foi geral. Quem observasse de longe aquele estranho grupo tão heterogéneo ficaria intrigado com um esplanada em peso a rir.
O empregado do bar desistiu de fingir que estava a trabalhar e juntou-se a eles. Puxou uma cadeira e sentou-se de frente para o bar, para ver quando chegasse algum cliente.
- Bem vindo de volta meu caro. Mais um intervalo? - perguntou-lhe a senhora que se chamava Inês.
- Não. Mas não resisti a vir ouvir o que se estava por aqui a contar... - respondeu, sentindo-se de repente um pouco embaraçado.
- Tens a certeza de que vais aguentar? Aqui a Sra. Madalena acabou de dar laxante a todos os homens que trabalhavam com ela no jornal... - disse-lhe o colega.
O empregado do bar abriu um sorriso rasgado.
- A sério? Conte-me tudo!
- Bem, o resultado disso - recomeçou Madalena - foi que todos eles ficaram "de cama" no dia a seguir, com uma estranha virose que só atacou os homens. Uma redacção de um jornal não pára e como tal, assumimos as rédeas do serviço com tamanha competência, que o director ficou deveras impressionado.
Eu tive a oportunidade de, durante dois dias, assinar os meus próprios artigos e o dono do jornal veio pessoalmente felicitar-nos pela forma profissional como trabalhámos. 
- E foi promovida a jornalista? - perguntou a rapariga do jovem casal.
- Não minha querida. O homem era um pulha e não deu o braço a torcer, apesar de eu lhe ter feito a vida negra a partir de então... Entretanto, o dono do jornal tinha um filho mais ou menos da minha idade. Um playboy cuja profissão era supervisionar os negócios do pai tão bem quanto lhe gastava a fortuna! Chegou-lhe aos ouvidos o meu caracter obstinado e quis saber mais sobre a assistente do director que lhe fazia a vida negra mas de quem ainda assim ele não queria abrir mão.
Acho que ficámos fascinados um pelo outro. Éramos ambos inteligentes e mordazes, com uma mente engenhosa. Ele começou a andar atrás de mim e em breve começámos a namorar. Acredito piamente que então ele me amasse à sua maneira e eu também. Tinhamos uma vida social activa e cheia de gente bonita e bem sucedida. Só que com o passar do tempo não veio nem o pedido de casamento nem a oportunidade de chegar ao tão ambicionado mundo do jornalismo "a sério"...
Até que houve um dia que me fartei. No fim de mais uma das nossas festas de arromba, eis que resolvi confrontá-lo. Parecia que lhe tinha feito a maior ofensa do mundo! Ao que parece, ficou a pensar que eu estava com ele só pela oportunidade de ser promovida e de ainda poder vir a dar o golpe do baú...
Não demorou nem dois dias a dar-me com os pés, da sua vida e do jornal. Obrigou o director a despedir-me e desapareceu do mapa.
Nessa altura percebi que com ele se tinha ido toda a minha vida social e as falsas amizades, assim como a minha oportunidade de subsistir sozinha na vida. E foi então que a Eugénia morreu.
Eu estava um caco e quando nos reunimos e resolvemos fazer o pacto de sermos felizes. No dia a seguir fui bater à porta de um dos principais jornais do país para pedir emprego. Um golpe de sorte fez com que o ex-namorado de uma das minhas ex-colegas de trabalho me reconhecesse. Ele tinha ficado a saber do que se tinha passado no meu antigo emprego - desde a usurpação do meu trabalho até ao modo como tinha sido dispensada - e intercedeu por mim. Arranjei emprego, primeiro com matérias muito modestas, mas que me permitiram ir conquistando o meu lugar.
Nunca mais consegui dar o meu coração em pleno a um homem. O que me restou daquela relação intensa foi o medo de me voltar a entregar. Assim, quando pressentia que as coisas iam ficar demasiado sérias, pisgava-me! Até que há cerca de uns quinze anos conheci o meu actual companheiro de vida. Continuamos a não ser casados e oficialmente nem moramos juntos, mas na verdade somos inseparáveis. 
- E como o conheceu?
- Atropelei-o!
- Ora conte lá...
- Bem, essa seria outra longa história meu querido, mas para a abreviar deixe-me que lhe diga apenas que eu ia de bicicleta para o trabalho e ele atravessou sem olhar, precisamente no momento em que eu estava a olhar para o lado para cumprimentar uma amiga... Fiquei tão atrapalhada e nervosa que ele, que não sofreu mais do que umas nódoas negras nas pernas, me arrastou para uma pastelaria para me dar um chá para ver se me acalmava. E nunca mais nos separámos desde então.
O empregado do bar sorriu, tentando imaginar quem seria o homem corajoso para domar o coração daquela mulher furacão há tantos anos.
- E porque nunca casaram? - perguntou o cavalheiro de olhos azuis.
- Quem disse que não casámos meu caro?
Madalena apontou para o seu próprio coração e continuou:
- Aqui sou só dele e ele é só meu. Não preciso de um papel que ateste isso mesmo! E se não moramos oficialmente juntos é porque assim conseguimos manter acesa a faísca que a monotonia de um casamento destrói. 
- Mas ele nunca a pediu em casamento? - perguntou o rapaz do jovem casal.
Madalena sorriu docemente.
- Todos os dias das nossas vidas. E todos os dias lhe respondo que não.
- Mas porquê? Quero dizer, para além da papel passado e assim, porque nunca pensou em aceitar?
- Porque assim continuamos a esforçar-nos. Eu esforço-me para que ele me peça todos os dias em casamento. Ele esforça-se para que eu finalmente o aceite.
A rapariga sorriu, num rasgo de entendimento. 
As quatro senhoras brindaram de novo e desta vez todas as pessoas à sua volta as acompanharam. 

(continua)

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