quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Quatro dentaduras e um copo de vinho: parte 3: "O caminho para a felicidade - Marta"

(continuação)

- Senhoras, permitem-me que me junte a vós?
Era o empregado do bar que finalmente estava na hora da sua pausa.
- Se aguentar ouvir-nos a falar, então seja muito bem vindo! - disse a senhora que se chamava Beatriz, com um sorriso travesso no olhar, que não passou despercebido ao empregado do bar.
- Minhas senhoras, pela audiência que já conquistaram à vossa volta, parece-me que ouvir-vos falar não será o problema. O pior será ter que sair daqui. - respondeu ele com uma piscadela de olho enquanto puxava uma cadeira para se sentar.
- Muito bem. Estávamos nós a contar que a morte da nossa amiga Eugénia serviu como um catalisador para as nossas próprias vidas. - disse a senhora que se chamava Beatriz, enquanto olhava um pouco à sua volta e percebia que as pessoas que tinham chegado se tinham sentado bem próximas e estavam realmente a ouvir a história.
- É verdade. Estávamos no início dos anos 80. Todas morávamos longe. Só tínhamos contacto através das cartas que íamos escrevendo ou de telefonemas, que eram esporádicos, porque nem todas tinham telefone e porque as chamadas eram caras. Apenas sabíamos que cada uma de nós tinha seguido o seu rumo e no dia em que nos juntámos de novo percebemos que nenhuma de nós tinha querido deixar transparecer o que realmente se passava. Acho que era a forma de conseguirmos manter a ilusão para nós próprias, percebe? Quando não se admite para nós, fica mais fácil manter a fachada para quem está de fora. E assim fomos criando uma vida de ilusão, com uma grande carapaça que se desmantelou por completo na altura em que nos reencontrámos e nos olhámos nos olhos pela primeira vez em muitos anos. - começou a senhora que se chamava Marta.
Bebeu mais um golo de vinho e depois continuou, enquanto pousava lentamente o copo sobre a mesa.
- Como lhe disse nunca casei. Mas quando nos reencontrámos estava noiva de um moço da minha terra. Ele era um excelente rapaz. Trabalhador. Honesto. Teria sido um bom marido, sem dúvida.
- O que lhe aconteceu? - perguntou um dos membros do grupo de quatro amigos.
- Oh, nada, não lhe aconteceu nada! - respondeu, dando ênfase a esta última palavra.
E as quatro riram à gargalhada, deixando a audiência completamente baralhada.
- Eu explico. O moço já andava atrás de mim desde a escola primária. Eu nunca lhe tinha achado realmente piada mas era das poucas moças que conseguia conversar com ele. Fomos crescendo e seguimos rumos um pouco diferentes, já que rapazes e raparigas não tinham aulas na mesma sala. No entanto, os intervalos eram comuns e as brincadeiras na rua também. Assim, ao longo da nossa adolescência o Alberto e eu tornámo-nos amigos. Eu sabia que ele ainda tinha uma paixoneta por mim, mas para além da minha amizade não havia nada da minha parte que lhe pudesse dar a mínima esperança.
Ele não era bem-parecido, não era charmoso, não tinha nenhum atributo em especial, mas era muito bom rapaz. O genro que qualquer mãe de então sonhava para a sua filha. E a minha mãe não era diferente das outras, coitadita.
Sempre me perguntei porque razão ele não se juntava muito aos outros rapazes para brincar e preferia passar o tempo comigo e com as minhas bonecas, mas pensei que era apenas por timidez  e tentava não pensar muito no assunto.
Os anos foram passando, nós fomos crescendo e eu fui para a faculdade, bem longe de casa. Tinha uma tia em Lisboa e fiquei instalada em casa dela durante os quatro anos do curso. Solteira e habituada a estar longe da terra, a minha tia era um pouco mais permissiva do que a minha mãe. Posso dizer que estes foram anos de ouro!
Quando voltei à minha terra, depois de quatro anos de loucura, eu tinha deixado de ser a moça simples e ingénua. E virgem.
O Alberto voltou à carga. No fundo não tinha mudado em nada durante a minha ausência e nada tinha mudado para ele. As raparigas lá da terra continuavam a evitá-lo e os rapazes também não lhe ligavam nenhuma. E ele não fazia qualquer esforço para mudar isso. Mas assim que percebeu que eu tinha vindo para ficar de vez tornou a andar atrás de mim.
Eu continuava sem sentir nada por ele e depois do que tinha vivido nos últimos quatro anos, de toda a gente que conhecera, ele era a pessoa mais chata do mundo...
- Então porque ficou noiva dele? - perguntou o cavalheiro de olhos azuis.
- Acho que entre a insistência do Alberto e a da minha mãe as minhas forças de resistência acabaram ali mesmo. Eu tinha começado a trabalhar e era tão dedicada ao que fazia, sempre a tentar provar as minhas capacidades, que a minha vida social caiu a pique. Com o tempo, as minhas amigas de lá foram casando, tendo filhos e eu continuava solteira e sem perspectivas de arranjar um candidato a marido que agradasse aos meus pais.
- É claro que ias fazendo tentativas pelo meio... - interrompeu a senhora que se chamava Madalena, com uma sonora gargalhada.
- Oh, se ia! E quando finalmente me resignei e aceitei a proposta de casamento do Alberto, sempre pensei que tudo o que ainda não sentia por ele apareceria quando finalmente tivéssemos sexo.
O cavalheiro de olhos azuis riu baixinho com um brilho travesso no olhar, como se isto lhe lembrasse a sua própria juventude, mas não a interrompeu.
- E foi isso que aconteceu? - perguntou o empregado do bar, olhando de novo para o relógio pois queria saber o fim desta história antes de regressar ao serviço.
- Bem, conforme eu dizia há pouco, não aconteceu nada. O Alberto continuou igual a ele próprio: cortês, cavalheiro, educado, respeitador...e passaram-se quase dois anos sem que tentasse mais do que um beijo quando chegava ao pé de mim e outro quando se ia embora. Os beijos que eu fazia os meus bonecos darem em criança eram menos castos do que os dele! O máximo que consegui do Alberto foi que a sua mão tocasse na minha e foi porque eu tomei a iniciativa. Dois anos nisto e começava a ficar angustiada. Porque quando não temos uma vida sexual activa e não sabemos como é, não é assim tão grave meu rapaz. O pior é começar e gostar do que se faz,  e nisso os tempos não mudaram nem éramos assim tão diferentes!
Até que um belo dia, numa noite quente de final de Verão, depois do baile da festa lá da terreola, o Alberto me vai levar a casa. Nós morávamos numa casa que ficava um pouco fora do centro da vila, e como tínhamos muitos animais, ao redor havia imensas dependências: um pequeno celeiro, estábulos, galinheiros...
Eis que nessa noite, aproveitando o facto de a minha mãe ter vindo mais cedo e de a nossa chegada ter sido discreta, empurrei o Alberto para dentro do celeiro. Pespeguei-lhe uns beijos mais elaborados, dei-lhe uns amassos, rocei-me até mais não e...nada! O pobre coitado, depois da surpresa inicial, ainda tentou corresponder de alguma forma, mas simplesmente não foi capaz.
Como devem calcular, foi uma grande frustração para mim. Ao princípio pensei que a culpa era minha e fiquei completamente devastada. Mas quando ele fugiu daquele celeiro fui atingida por um raio de luz: o meu noivo era impotente!
Como é que eu podia pensar em continuar aquele noivado? Eu não o amava, não ia ter sexo na minha vida, mas como raio ia eu dizer à minha mãe que o meu noivo não conseguia ter uma erecção? Era tabu falar destas coisas! Se a minha mãe soubesse que me tinha tentado enrolar com o Alberto ainda lhe iria agradecer o facto de não ter conseguido consumar o acto! Estava completamente perdida.
Entretanto, ele arranjou uma desculpa esfarrapada sobre andar "cheio de trabalho fora dali" e passou um mês sem me aparecer à frente. Não que me tivesse importado, mas começava a ser tema de conversa nos cafés. E num desses zum-zuns ouvi uns boatos...
Entretanto soube da morte da Eugénia. Meti uma semana de férias e rumei a Lisboa, onde voltei a pedir guarida à minha querida tia, que me recebeu de braços abertos.
Quando nos juntámos as cinco de novo e lhes contei o que tinha acontecido e o boato que tinha ouvido, parecia que me tinha saído uma tonelada de cima. Acabámos a noite a rir à gargalhada às custas deste episódio. A  pobre Francisca ainda não conseguia acreditar como raio tinha eu conseguido entrar numa situação daquelas e tentou arranjar mais de mil maneiras suaves para eu conseguir dizer à minha mãe que o noivado tinha acabado!
Entretanto quando resolvemos fazer o nosso pacto rumo à felicidade, decidi que ia ter que fazê-lo que qualquer forma e que não havia volta a dar ao assunto. Assim, parti rumo à minha terra, com a minha auto-estima de volta, assim como a minha vontade de viver. Entrei em casa e mal tive tempo de pousar as malas. Chamei a minha mãe e disse-lhe que não ia mais casar com o Alberto.
Pobre mãe, que desatou num pranto. Mas eu estava decidida e percebi que o pranto não passava de chantagem emocional. Então perguntei-lhe "A mãe quer ter netos?", ao que ela respondeu "Mas é claro que quero! Que raio de pergunta é essa?". Então disse-lhe simplesmente: "Pois do Alberto não seriam e por favor não me peça para entrar em pormenores!".
A minha mãe não me perguntou mais nada. Secou as lágrimas e levou dois segundos a fazer o luto pelo suposto genro perfeito. Até hoje não sei o que disse ao meu pai, mas ele nunca mais perguntou pelo Alberto. E o pobre Alberto, depois de eu lhe dar com os pés, enfiou-se num seminário e tomou votos.
- Não me diga que foi para padre?
- Digo pois. Ainda hoje é o padre da paróquia lá da aldeia! Dizem as más linguas que foi pelo desgosto. Pois eu digo que naquela noite descobri que o Alberto é gay.Os tempos eram outros e nem pensar em "sair do armário".
Ouviu-se uma gargalhada geral.
- E você, depois dele nunca mais teve nenhuma relação que fosse para durar? - perguntou o rapaz do jovem casal.
- Oh, claro que sim meu caro. A melhor relação que podemos ter, primeiro é que temos connosco próprios e depois é a da amizade. E estas amigas enchem-me até à alma...
- Eu queria dizer, com homens.
- Eu sei - respondeu-lhe Marta com uma piscadela de olho - e tive algumas relações, se é que lhes podemos chamar assim, mas sempre tive o juizo de os mandar ir comer e lavar as camisas a casa das mães.
- Ámen a isso! - responderam as outras em coro em mais um brinde.
O empregado do bar levantou-se pois estava na hora de voltar ao seu posto de trabalho. Levava o coração cheio de uma fantástica história de vida e deu consigo a desejar não ter movimento ao balcão para se escapar de mansinho e não perder o resto que ainda estava por contar.

(continua)

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