sábado, 4 de fevereiro de 2012

Quatro dentaduras e um copo de vinho - parte 2: "A Promessa"

- Estávamos no fim do Verão quando as aulas começaram. Lembro-me tão bem como se fosse hoje, porque estava morta de medo! Sabe jovem, os meus pais moravam numa pequena aldeia e era o meu primeiro dia longe de casa. Eu era a menina da mamã e tive direito a uma excelente educação, o que era pouco habitual na altura. Mas a faculdade era longe e de repente vi-me sozinha no meio de uma grande cidade - a velha senhora, que exibia uma longa cabeleira negra com uma madeixa prateada na franja riu baixinho - e só o recinto da escola tinha mais gente do que a minha aldeia! Eu estava assustadíssima, mas absolutamente radiante.
- E foi então que te apanhámos! - disse outra, soltando uma sonora gargalhada, sendo seguida pelas outras.
- Literalmente. É que tenho a tendência para ficar descoordenada quando estou nervosa e foi assim que em pleno recinto cheio de gente dei um grande, grande tralho!
O empregado pareceu surpreendido com o uso desta expressão de calão, que parecia não combinar com o ar quase majestoso e doce da senhora, e percebeu que por detrás desta aparência havia mesmo muito para descobrir.
- Naquela altura em que a vimos no chão tivemos todas a mesma reacção - continuou outra delas - e parece que fomos atraídas por um íman, tal foi a rapidez com que a rodeámos, apanhámos e disfarçámos a situação.
- Oh céus, eu estava vermelha que nem um tomate, quase com as lágrimas nos olhos tal era a vergonha, mas estas miúdas salvaram-me de boa! 
- Em primeiro lugar certificámo-nos que ninguém a tinha visto. Depois ficámos a olhar umas para as outras, já que não nos conhecíamos de lado nenhum, e percebemos quão estranha era a situação.
- Ninguém lhe perguntou se se tinha magoado com a queda? - quis saber o empregado.
- Não!
A gargalhada foi geral e espelhava bem o que se tinha passado na altura.
- Éramos jovens meu caro e o orgulho e a dignidade faziam feridas maiores no ego do que um joelho raspado!
- A partir desse momento tornámo nos inseparáveis. Foram quatro anos da mais pura loucura e amizade, recheados de aventuras e desventuras.
- Mas eis que chegou o fim do curso e acabámos por nos separar.
O empregado notou que apesar de estarem as quatro a contar a sua história, ainda assim pareciam falar a uma só voz.
- Mas porquê? - perguntou- Se eram assim tão próximas, o que se passou?
- Nada de especial meu querido, simplesmente voltámos a casa. Olhe bem para nós. Somos de uma geração diferente da sua. Todas saímos das nossas aldeias, vilas ou cidades. Não havia meios de comunicação como vocês, jovens, os conhecem quase desde que nasceram. Não tinhamos computadores, internet, telemóveis... Tudo era mais distante e complicado. 
- Mas deixaram de se ver e de se falar por completo?
- Não, não por completo, mas as notícias começaram a escassear com o passar dos anos. Só nos conseguíamos comunicar por carta ou por telefone, mas no fundo acho que quando estamos na década dos vinte estamos tão preocupadas em construir "uma vida" que não nos apercebemos que a vida acontece, quer nós queiramos quer não! Durante a adolescência e o início da idade adulta, muitas vezes rebelamo-nos contra aquilo que a sociedade nos impõe como sendo "politicamente correcto" ou "socialmente aceite", mas quando chegamos ao vinte e poucos anos, saímos do mundo dos estudos e entramos no mundo do trabalho, temos tendência para pensar que aí começa a nossa vida "a sério" e então temos tendência a esquecer tudo o que ficou para trás.
A velha senhora serviu-se de mais um copo de vinho e bebericou um pouco antes de continuar.
- Eu casei e tive dois filhos. Um casal.
- Eu nunca casei. Graças a Deus tive juízo antes de cometer o maior erro da minha vida.
- Eu fui casando várias vezes ao longo dos anos até que finalmente acertei.
- Eu nunca casei, mas tive um filho de um homem fantástico.
As quatro ergueram as taças ao mesmo tempo e falaram a uma só voz.
- E quando nos reencontrámos voltámos a viver.
O empregado olhou para um jovem casal que tinha acabado de se sentar. Pediu licença quando se levantou, mas assegurou-lhes que voltava num instante para acabar de ouvir a história.
Acabou de servir os dois grandes cafés com natas que eles tinham pedido e voltou a sentar-se junto das senhoras.
- Mas o que aconteceu?
- Uma tragédia.
- Então?
- O nosso grupo era de seis. A Inês (que sou eu), a Marta, a Beatriz, a Madalena - disse apontando para si própria e seguidamente para cada uma das amigas - e depois havia a Francisca e a Eugénia. Duas delas já não estão entre nós, uma delas há mais de vinte anos.
A velha senhora de ar majestoso com a madeixa no cabelo segurou na mão da que se chamava Inês e foi ela quem continuou a história.
- A Eugénia era uma das mais divertidas do grupo. Moça de boas famílias, criada na alta sociedade do Porto, veio estudar para Lisboa, onde o pai tinha familia e alguns negócios. Ao pé da família era a moça mais casta do mundo, mas entre amigos era a alma da festa. E foi assim que conheceu o António.
- Em pouco tempo tornaram-se inseparáveis. Unha com carne. Um só respirava se estivesse próximo do outro. - continuou a que se chamava Madalena. - A Eugénia era uma moça linda: alta, ruiva, com uns grandes olhos verdes brilhantes de alegria e umas pernas lindas de morrer! O António era um moço que combinava bem com ela: alto e lindo. Parecia um actor de fotonovelas! Formavam um casal e pêras.
- Soubémos que se casaram mal acabámos o curso. O António era cerca de dois anos mais velho que nós, terminou o curso primeiro e logo começou a trabalhar para o pai da Eugénia. Como também vinha de boas famílias não houve qualquer impedimento a esta união. Como lhe dissemos, os anos foram passando e, embora continuássemos a ter notícias umas das outras, estas eram cada vez mais esporádicas. 
- Mas com os anos todas nós nos apercebemos que o brilho da Eugénia ia esmorecendo cada vez mais. As cartas perderam a vida de outrora. Já não contavam aventuras e segredos, como se a sua vida se resumisse às rotinas de casa e aos filhos. Logo ela, uma das alunas mais brilhantes do curso, para quem se previa uma brilhante carreira profissional, resumir a sua vida a fraldas e fogão!
- A voz também deixou de ser igual. Aquele timbre alegre, com uma gargalhada fácil, perdeu-se. Quando falei com ela pela última vez, foi para me contar que esperava o quarto filho. A alegria na sua voz era forçada, quase como se estivesse a ler um guião, quase como se se convencesse a si própria de algo. E foi então que tudo aconteceu.
A senhora que se chamava Inês interrompeu o seu discurso.
- Perdão meu caro, mas acho que estão ali mais uns clientes à espera.
O jovem pediu licença, ainda com um ar meio absorto, pois encontrava-se completamente mergulhado numa época distante, onde em vez de gel se usava brilhantina, numa sociedade que oscilava perigosamente entre o socialmente correcto e a insanidade total.
Levantou-se e dirigiu-se à mesa de trás, onde um grupo de quatro amigos na casa dos trinta anos acabava de se sentar. Anotou o pedido e dirigiu-se ao bar para ir buscar os cafés e os pastéis de nata.
O seu colega dirigiu-se a ele com um tom meio zombeteiro, piscando o olho:
- Não me digas que estás outra vez na conquista? Não achas que estas são um pouco velhas demais para ti?
O empregado sorriu e respondeu:
- Hoje não sou eu que estou a conquistar. Hoje fui completamente conquistado. Quando fores fazer o teu  intervalo junta-te a nós e vais perceber...
Voltou então para a mesa dos quatro amigos e serviu-lhes tudo o que tinham pedido. Após se certificar que não precisavam de mais nada, voltou a sentar-se junto das quatro senhoras e pediu-lhes que continuassem.
- Mas afinal o que aconteceu à vossa amiga Eugénia?
- Morreu dois dias depois de termos falado. - os olhos de Inês encheram-se de lágrimas mas nem uma lhe escorreu pela face - A versão oficial é que terá caído das escadas e como começou a sangrar, teria pegado no carro para ir ao hospital. Mas nós sabemos que não foi isso que realmente aconteceu...
- Não? Então como morreu ela?
- A Eugénia tinha uma irmã mais nova, muito ligada a ela. No dia em que me ligou para dar a notícia, só quase uma hora depois conseguir perceber uma única palavra, tal era o pranto em que se encontrava. Foi um choque imenso como deve calcular.
- Precisamente dez anos depois do último dia de aulas foi o seu funeral. E só nesse dia nos reencontrámos todas.
- Chorámos o dia todo, uma vezes da alegria de nos revermos, mas sobretudo da enorme tristeza de termos perdido uma irmã do coração.
- Depois do funeral juntámo-nos com a irmã da Eugénia e ficámos a conversar mais um pouco junto à campa. Os três filhos da nossa amiga afastaram-se com a avó materna e o pai. A filha do meio era a cara da mãe.
- A irmã dela contou-nos que a Eugénia era extremamente infeliz. Foi como se nos tivessem atirado um balde de água gelada em cima, mas acho que lá no fundo já desconfiávamos que alguma coisa não estava bem. A vida que ela levava simplesmente não combinava com a jovem fogosa e cheia de vida que tinhamos conhecido em tempos!
- Afinal o António não era o príncipe encantado que parecia. Mal casaram, proibiu a Eugénia de trabalhar e confinou-a a cuidar da casa e dos filhos que lhe ia fazendo. A irmã dela confidenciou-nos que o fogo da Eugénia acabou quando, após ter tido o primeiro filho, ainda não estava recuperada do parto e ele a violou. Foi o princípio do fim da sua vida. A partir daí foi um descalabro total e do desrespeito moral começou a haver abusos fisicos. Violência, violação...tudo o que lhe possa passar pela cabeça. A única coisa que a mantinha de cabeça erguida eram os filhos.
- Constou-se que ela tentava  tomar medidas contraceptivas, mas sabe como as coisas eram naquela época. E o António tinha olhos e ouvidos em todo o lado! Os ciúmes tornaram-no obsessivo e violento. A pobre Eugénia não podia sair de casa sozinha, não podia escrever-nos sem que ele aprovasse a carta, não podia ligar-nos, não podia atender o telefone na sua ausência...E como cão de guarda, lá estava a mãe dele.
- Nós sabíamos que havia uma razão muito forte para nunca termos gostado dela!
- Pobre coitada! Mas afinal o que aconteceu no dia em que ela morreu? - perguntou o rapaz do casal que se tinha sentado na mesa ao lado. Só depois se apercebeu que estava a ouvir a conversa alheia e a meter o nariz onde não era chamado e ficou subitamente engasgado. - Desculpem, mas não resisti.
As quatro senhoras e o empregado desataram a rir à gargalhada e o colega do bar mirou-os com curiosidade, olhando para o relógio de pulso para ver se ainda faltava muito tempo para a sua pausa.
- A Eugénia perdera o fogo mas não a astúcia que a caracterizava. - disse a que se chamava Beatriz. - Só a irmã sabia de tudo o que se passava, mas não havia grande coisa que pudesse fazer para ajudá-la. Os tempos eram outros e só de pensarem em divórcio era um escândalo. Como não podia falar a viva voz, foi mantendo diários, que escrevia ás escondidas, nos raros momentos em que estava sozinha. Criou um esconderijo secreto lá em casa onde os guardava religiosamente ao longo dos anos. A irmã entregou-nos os diários a nós, pois essa era a vontade da Eugénia e disse-nos que no dia em que ela ligara à Inês para lhe contar que estava grávida, o António lhe batera porque percebera a falta de entusiasmo dela ao telefone. Para ele tudo era motivo para desconfiança e o pretexto ideal para lhe bater. Naquele dia bateu-lhe com tanta raiva que o filho mais velho se pôs no meio. Então bateu nele também. E depois foi-se embora. Foi a gota de água! A Eugénia tinha uma mala de emergência já feita. Agarrou nela e nos três filhos, derrubou a sogra que a tentava impedir de sair e pôs-se a caminho do Porto. O António tinha-a ensinado a conduzir na faculdade, mas depois de casarem quase nunca tinha conseguido pegar no carro, a não ser quando ele estava demasiado bêbedo para trazer a familia de volta para casa. Estava uma noite chuvosa e a estrada não tinha o piso nas melhores condições. Nervosa e ferida, começou com uma enorme hemorragia que se foi agravando até acabar por desmaiar. Esvaiu-se em sangue ali mesmo dentro do carro, à frente das crianças.
- Pobre coitada! Que sofrimento deve ter sido... - comentou a rapariga do jovem casal.
Uma das velhas senhoras sorriu pacificamente e a jovem notou que todas sem excepção exibiam um misto de ternura e de orgulho no olhar.
- Nós gostamos de pensar nela não como uma coitada, mas como a nossa Joana D'Arc! Uma heroína, já que deu a sua vida mas salvou as nossas...
O empregado franziu o sobrolho como se estranhasse aquelas palavras.
- Sim meu jovem, ela salvou-nos a todas. Como lhe dissemos, a irmã da Eugénia entregou-nos os seus diários. Ela escrevia-os para nós, em forma de cartas, de conversas, ela fazia-nos as suas confidências mais profundas. Juntámo-nos para os lermos em conjunto e chorámos o dia todo. Depois percebemos que era um grande erro continuarmos separadas e sem nos contactarmos durante tanto tempo.
- Naquele dia contámos tudo das nossas vidas umas às outras e foi então que fizemos uma descoberta surpreendente...
- E que descoberta foi essa?
- Que, apesar do que espelhávamos para fora, e até umas para as outras, éramos todas profundamente infelizes.
Nessa altura o empregado do bar aproximou-se deles, trazendo uma bandeja com mais alguns cafés, que serviu a mais um pequeno grupo que tinha acabado de se sentar.
O empregado pediu desculpa aos clientes, que eram habituais, mas estes não se importaram nem um pouco que ele não o tivesse visto.
- Não tem problema. Vejo que está em boa companhia. - respondeu um deles, piscando o olho que tinha uma cor azul cor do mar na direcção das senhoras.
O empregado sorriu e disse:
- Senhoras, acabaram de derreter mais um coração.
Elas riram com gosto e brindaram na direcção deles, em jeito de cumprimento.
- Mas e então, o que aconteceu depois?
- Bem, digamos que fizemos uma promessa a nós mesmas: a de que a morte da Eugénia não seria uma tragédia, mas um hino à vida. A de que a sua luta não teria sido em vão. E que os apelos que nos fazia ao longo das páginas dos seus diários seriam o início de algo de novo nas nossas vidas: o caminho para a felicidade.

(continua)







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