quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Uma noite de tempestade...

Há uma aura de magia no ar num dia de chuva. Não sei se é do cheio a terra molhada, se é das cores que despontam do céu quando se abre um simples raio de sol.
Desde miúda que os arco-íris me fascinam. São algo que mexe comigo, vindos directamente daquele mágico mundo da imaginação que só uma criança é capaz de ter. E foi num dia de chuva que o arco-iris aconteceu e ficou para toda a minha vida...

Saí do autocarro e abri espaço por entre a multidão para tentar abrir o chapéu de chuva. Este era um Inverno particularmente chuvoso, com dias cinzentos e frios, que eram capazes de nos gelar por fora e por dentro.
Consegui furar pelo meio daquele mar de gente que se deslocava pelas ruas da cidade e entrar na porta do prédio da minha casa, sem me molhar, o que por si só era um feito digno de mérito, já que o céu decidira descarregar toda a sua fúria de uma só vez.
Mal tinha entrado em casa quando senti algo peludo roçar-me nas pernas. Era o Chakra, o meu siamês, que tinha um acordo tácito comigo: festas na barriga em troca de passar algum tempo ao meu colo.
Era a minha única companhia mas confesso que depois de um dia de trabalho me dava imenso prazer chegar a casa e ter um companheiro silencioso que não era demasiado exigente e que quase não me dava trabalho a tratar.
Naquela noite sentia-me cansada. Mais do que era habitual. Tomei o meu banho e vesti uma roupa confortável, que andava entre o decente para sair e comprar qualquer coisa para comer e o conforto do sofá, onde planeava deixar-me dormir.
Calcei uns ténis e vesti um casaco impermeável e quente.
- A dona já vem. Porta-te bem. - disse para o Chakra, em jeito de aviso.
Os seus olhos azuis brilharam, aceitando o desafio que acabara de lhe impôr e lambeu lânguidamente os beiços. Já sabia que ia encontrar alguma coisa fora do lugar quando voltasse a entrar em casa.
Saí do prédio e pus-me a caminho do pronto-a-comer no quarteirão seguinte. Ainda chovia e estava a tentar abrir o chapéu de chuva para não apanhar uma molha, que me valeria uma bela constipação após o banho quente e reconfortante de onde acabara de sair.
Estava tão envolvida na luta com o chapéu que nem o ouvi aproximar-se.
- Precisas de ajuda?
Oh céus, a sua voz tinha o dom de mexer comigo e me deixar irritada. Aliás, o simples facto de ele respirar me deixava irritada!
Ergui os olhos e encontrei os seus. Azuis, claros como o mar das Caraíbas e nesse dia não exibiam o rasgo de ironia que estava tão habituada a encontrar ao longo dos anos.
Baixei um pouco as defesas e descontraí o maxilar, o que também tornou a minha voz um pouco menos áspera do que o habitual ao responder-lhe.
- Não, obrigada. Isto é só dar aqui um jeitinho e já se segura...
- Tens a certeza?
- Absoluta.
Ele encolheu os ombros e caminhou rumo à porta do prédio. Do prédio onde eu morava. Do meu
prédio.
Fechei os olhos por um momento, respirei fundo para normalizar o ritmo cardíaco e voltei à minha luta com o chapéu tentando varrê-lo do pensamento. Definitivamente o universo gostava de uma brincadeira de mau gosto de vez em quando. Só podia, para tê-lo feito meu vizinho depois de tudo o que me fizera passar...
Finalmente consegui fazer segurar o chapéu de chuva aberto e pus-me a caminho.
Tinha ficado intrigada com o olhar dele. Parecia que toda a idiotice habitual tinha desaparecido, que as barreiras que erguia à sua volta tinham sido derrubadas. Parecia quase um ser humano normal.
André eu eu tinhamos crescido juntos. Quero dizer, não na mesma casa, mas na mesma rua. Desde miudo que o detestava. E ele a mim. Tinhamos o condão de nos irritarmos mutuamente. Ele porque era um verdadeiro idiota e se armava em parvo, eu porque ficava tão irritada com a sua idiotice que não resistia em mexer-lhe com os nervos.
Como daquela vez em que eu estava com um grupo de amigas num bar e ele arranjou maneira de me fazer entornar a bebida sobre o meu vestido novo, que me fazia umas pernas deslumbrantes, exactamente no momento em que eu estava quase a dar a volta a um espécimen do sexo oposto que era do tipo semi-Deus...e eu depois vinguei-me dizendo a todas as minhas amigas que ele não sabia beijar e que me tinha lambido até à goela! Não que ele tivesse de facto tentado beijar-me alguma vez ou vice-versa, mas o boato arruinou-lhe a reputação durante uns bons meses.
Só de pensar naqueles tempos veio-me um sorriso ao rosto. Parecia que não me conseguia lembrar da minha existência sem ele para me irritar.
Depois de eu ter saído da casa dos meus pais tinha finalmente conseguido um pouco de paz. Ele entretanto também tinha ido morar com a namorada, por isso os nossos caminhos afastaram-se durante alguns anos...até há algumas semanas atrás!
Estava eu descansadinha da vida quando a um Domingo de madrugada (tipo, onze da manhã depois de uma saída até tarde com amigas) oiço um barulho de coisas a arrastar sobre a minha cabeça. A custo tinha aberto os olhos e foi com horror que percebi que tinha adormecido com a persiana em cima e a visão da minha janela incluía um elevador de uma carrinha de mudanças. Arrastei-me até lá para fechar a persiana, evitando exibir a minha roupa interior a uns quantos homens das mudanças e foi com horror que vi o André lá em baixo, a comandar os trabalhos.
Tentei raciocinar e percebi que o andar que ficara vago por cima de mim tinha sido alugado na semana anterior...e pelos vistos tinha sido por ele! O meu pensamento vagueou por entre uns palavrões e um "a minha vida acabou!" mas depois percebi que era o cansaço que me estava a puxar para o melodrama.
Como estava enganada! Desde que me descobrira, num dia em que eu estava a entrar encharcada no prédio, que o inferno estava de volta à minha vida. O mesmo olhar zombeteiro, o mesmo ar arrogante...
O pior tinha sido quando me tinha visto a entrar com um amigo no prédio. O olhar que me lançou oscilou entre o "vou contar tudo à tua mãe!" e o "o que é que pensas que vais fazer com esse fulano?". Incomodou-me a tal ponto que o encontro que se antevia escladante não passou de um mero café.
Consegui chegar ao pronto a comer sem ficar entalada no chapéu. Pedi a comida e voltei para trás, fazendo o caminho de regresso a casa mais uma vez absorta em pensamentos e recordações. Nem dei pela sombra que se aproximou por detrás de mim e que me deu um puxão na mochila que levava apoiada só num ombro.
Só dei por ter gritado a plenos pulmões mais tarde, ao rever a cena na minha cabeça. Naquele instante tudo se passou muito rápido. Tão rápido que só momentos depois consegui ver o que estava a acontecer. Alguém me tinha tentado roubar a mochila e o André, sim o André, tinha apanhado o fulano e estava a dar-lhe um enxerto de porrada.
Encostei-me à parede a tremer e passado alguns momentos o André veio ter comigo já com a mochila na mão. Tinha recomeçado a chover mas nem tinha dado conta.
- Estás bem? - perguntou-me.
- Sim. E tu? - ainda não conseguia acreditar que ele tinha dado um enxerto no assaltante e me devolvia calmamente a mochila.
- Estou bem. Vamos para casa.
Não consegui deixar de pensar na ironia da situação e apesar de tudo dei por mim a sorrir e a dizer-lhe com um ar malicioso.
- Para a tua ou para a minha?
Ele sorriu-me de volta percebendo a piada mas não respondeu. Em vez disso acompanhou-me em silêncio.
- Não tinhas ido para casa? - perguntei-lhe.
- Tinha. Mas continuo a ter o péssimo hábito de fumar e desci para comprar cigarros.
Chegámos à porta do prédio e entrámos. Subimos escada acima e chegámos ao meu andar num instante. Abri a porta mas não entrei logo e ficámos parados a olhar um para o outro sem saber bem o que dizer. Pela primeira vez não  estavamos a implicar nem mal-dispostos com a presença do outro no mesmo espaço. E isso era muito estranho.
Reparei que ele estava a sangrar do canto da boca e instintitavemente levantei a mão para lhe tocar, mas ele parou-me a meio.
Respirei fundo e resignei-me. Não éramos nem nunca seríamos amigos, mas pelo menos podia deixar de ser grosseiro.
- Por favor não! - disse-me.
Isso desencadeou-me uma reacção familiar, que foi a de me deixar furiosa com ele.
- Bolas André, pára de ser estúpido! Estás a sangrar porque andaste à pancada com um assaltante por minha causa. Ao menos deixa-me tratar disso.
- Não é preciso. Eu próprio trato disto quando chegar a casa.
- É o mínimo que posso fazer.
- Não.
A sua teimosia deixou-me com a irritação crescente que sempre me fazia sentir.
- Porque é que não deixas de ser parvo ao menos uma vez na vida André? Desde miúdo, nunca foste capaz de ser minimamente simpático para mim. Sempre te comportaste como um verdadeiro idiota, sempre te divertiste a estragares as minhas saidas, os meus arranjinhos... Mas afinal que mal é que eu te fiz?
As perguntas saíram-me da boca em jeito de desabafo, mas não esperei para ouvir a resposta. Simplesmente voltei-lhe as costas e entrei em casa, batendo a porta com força. Mas a porta não fez qualquer estrondo. Pelo menos quando eu a fechei, porque bateu com uns segundos de atraso.
Quando me apercebi, o André puxava-me pelo ombro e encurralava-me a um canto do hall de entrada, numa proximidade física que me deixou ofegante.
Só naquele momento reparei nele. Em como era alto, como tinha ombros largos e braços fortes. Quando me ergueu o rosto para poder olhá-lo nos olhos, vi que as suas mãos eram duras e delicadas. E vi no seu olhar um fogo que não conhecia.
- Mal? Passei a vida a defender-te dos idiotas por quem te apaixonavas ou que te queriam levar para a cama! Das tuas pseudo-amigas que te criticavam pelas costas! A tentar chamar a tua atenção quando tu nem percebias que eu existia!
Abri a minha boca de espanto, e pela primeira vez na vida fiquei sem palavras para lhe responder.
Quando forcei o meu cérebro a raciocinar, analisei toda a minha infância e adolescência e tentei vê-la pelos seus olhos e fiquei espantada. Quando para mim aconteciam desgraças, ele estava sempre por perto. Mas a perspectiva dele ia sempre mais além do que a minha. E enfureceu-me perceber que tinha razão na avaliação do caracter das pessoas de quem acabava por me proteger. Só que eu, emvez de pensar nisso dessa forma, durante toda a minha vida acabei por culpá-lo de tudo o que me acontecera. Porque era mais fácil e habituei-me a que ele estivesse sempre lá.
Um pouco como hoje. Numa situação como a de hoje não imaginava mais ninguém para me safar destes apuros. E ele tinha estado lá, uma vez mais.
A sua mão ainda segurava a minha face, mas a fúria inicial com que me forçara a olhá-lo estava a desaparecer.
Levantei a minha mão e levei-lha de novo ao canto da boca magoado, acariciando-o levemente enquanto murmurava:
- Desculpa André. Desculpa-me! Nunca tinha pensado em tudo isto dessa perspectiva...nem sei o que te diga! Acho que era mais fácil descarregar em ti do que enfrentar a verdade. E devo ter sido mesmo muito má para ti....no entanto, hoje estiveste lá de novo exactamente quando mais precisei de ti. Obrigada.
O seu olhar perdeu as ultimas faíscas de fúria e agora exibia uma outra expressão que já lhe tinha visto várias vezes, mas que não soubera identificar.
Engoli em seco antes de conseguir continuar. Precisava que ele me respondesse a uma pergunta que me aflorava a mente desde miúda.
- Porquê? Se só querias o meu bem, porque me tratavas tão mal e me deixavas acreditar que eras uma pessoa horrível?
- Porque nunca quis admitir isto.
E nesse momento o André beijou-me. Senti a pressão da sua boca contra a minha numa urgência que só o desejo acumulado poderia despertar. As suas mãos ergueram-me à sua altura e as minhas mãos rodearam-lhe de imediato os ombros, num desejo que correspondia em pleno ao seu. Os nossos corpos moldaram-se como se fossemos um só. E então o tempo pareceu entrar em suspenso e nada mais importava à nossa volta.
Foi o beijo da minha vida. O único com significado. O único que realmente mexeu comigo.
Ali mesmo o meu mundo abanou e nunca mais foi o mesmo.
Chovia torrencialmente lá fora, numa calorosa tempestade que combinava com o bater dos nossos corações. Mas ali dentro da minha casa, naquele momento deixou de ser de noite, pois à frente dos meus olhos estava um homem que se tornou o arco-íris da minha vida. E naquela noite fizemos magia, bem ao jeito daquela que só acontece em dias de chuva...






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